Diário de Notícias

Entre a orelha de Van Gogh e os olhos da cara

- MARCELLO SACCO JORNALISTA ITALIANO FREELANCER

Numa das primeiras cenas de Basquiat, o filme biográfico que o pintor Julian Schnabel, estreando-se no cinema em 1996, dedicou ao seu amigo, artista nova-iorquino, vemos o crítico René Ricard sentado num banco dum jardim a escrever: “Toda a gente quer entrar no barco de Van Gogh… Ninguém quer fazer parte duma geração que ignore outro Van Gogh… Quando olhamos para uma pintura podemos estar a olhar para a orelha de Van Gogh.” É um artigo de 1981 sobre Keith Haring e outros artistas contemporâ­neos e, enquanto ele o escreve, Jean-Michel Basquiat sai do caixote de papelão onde passou a noite e vai passear e grafitar pela cidade.

Schnabel continua evidenteme­nte obcecado pela orelha de Van Gogh, pois está a rodar um biopic com Willem Dafoe no papel do pintor holandês. Ambos, realizador e ator, estarão em Lisboa nos próximos dias, no 11.º LEFFEST. Entre outros eventos e convidados excecionai­s, o Lisbon & Sintra Film Festival apresenta uma retrospeti­va dos filmes que Schnabel entretanto realizou, mais um: Julian Schnabel. A Private Portrait, o documentár­io do italiano Pappi Corsicato que recolhe testemunho­s de familia- res, colecionad­ores e amigos famosos acerca desta original figura de artista plástico, cineasta, cozinheiro e surfista das mil facetas, mil mulheres e outros tantos filhos, todos juntos num retrato particular e geracional.

Aquela cena de Basquiat contém um pequeno anacronism­o propositad­o: enquanto o crítico, capaz de enterrar ou erguer um artista aos céus, escreve e afirma o seu poder numa sociedade que não quer perder o próximo barco de Van Gogh, o novo génio incompreen­dido passa a noite ao relento, mesmo ali ao lado. Mas esse mesmo artigo já mencionava Jean-Michel Basquiat entre os melhores da sua geração, e o título, The Radiant Child, viria a ser quase monopoliza­do por ele, tornando-se uma espécie de alcunha póstuma para o artista falecido no auge do sucesso, aos 27 anos (maldita idade), de uma overdose de heroína.

O que os dois filmes – o de Schnabel sobre Basquiat e o de Corsicato sobre Schnabel – contam é precisamen­te a história de artistas que apanharam o outro barco, que vinha na direção contrária ao de Van Gogh. Daí a obsessão pelo grande pintor falhado que nenhum deles foi, mas também a sensação de que tanto o barco do falhanço como o do êxito pode ir à deriva. A arte (como o amor naquela canção de mais uma que se foi aos 27 anos) is a losing game.

Nos mesmos anos em que Ricard escrevia e impunha os seus autores no mercado, o crítico italiano Achille Bonito Oliva teorizava que já não havia espaço para Van Goghs neste mundo, porque a obra de arte era o

Schnabel continua evidenteme­nte obcecado pela orelha de Van Gogh, pois está a rodar um biopic com Willem Dafoe no papel do pintor holandês. Ambos, realizador e ator, estarão em Lisboa nos próximos dias, no 11.º LEFFEST

próprio mercado, com a sua capacidade de reconhecer e premiar talentos. Uma espécie de jaula autorrefer­encial em que o artista é artista porque é identifica­do como tal e o golpe de asa está nas mãos de quem o sabe reconhecer e não permitir que outro génio passe a vida sem vender um quadro, mas sim que os venda todos pelos olhos da cara e pare de automutila­r orelhas.

Outra cena de Basquiat mostra o pintor, já fora da jaula onde era apaparicad­o, levar uma monumental sova de um grupo de marmanjos a quem se apresentar­a como autor dos graffiti que durante anos, de facto, assinou como SAMO.

Pappi Corsicato, que em Itália surgiu como uma espécie de Almodóvar napolitano, mas com um percurso internacio­nal que revela uma personalid­ade curiosa e omnívora, amigo pessoal, entre outros, dos irmãos Coen, dá por acaso o seu nome ao gerente ítalo-americano do bar em que se exibem os vários cantores folk de A propósito de Llewyn Davis, filme genial dos Coen sobre a banalidade do génio. Por aquele bar passam cantores muito similares. Alguns recebem aplausos, outros apupos, um deles é uma imitação subtil e clara de Bob Dylan. Llewyn Davis faz parte do grupo, mas não tem onde cair morto. Numa das casas onde consegue dormir, descobre por acaso que o anfitrião também compõe e tem uma prateleira cheia de discos que ninguém lhe compra. São as consequênc­ias da criativida­de difusa. Também para ele, no final, sobra uma sova monumental.

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