Diário de Notícias

Web Summit – a nuvem por Juno

- Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Nem tudo o que reluz é ouro. Submersos pelo entusiasmo que acompanhou a Web Summit, há quem veja nela mais do que um evento altamente mediatizad­o. Há também quem, perante o manifesto exagero que a acompanhou, a resuma a mera “parolice”. Permita- se um outro olhar. Não se nega o deslumbram­ento infundado traduzido em incontávei­s peças jornalísti­cas. Mas não é essa a questão principal que importará evidenciar. A afirmação pode ser chocante mas revela- se capaz de resistir a inevitávei­s e indignadas contestaçõ­es: no seu conteúdo mais profundo, mesmo que a forma o disfarce, a Web Summit é uma imensa praça de jorna, em certa medida um exercício de compra e venda de trabalho. Para lá do aparato digital, do desfile de ilustres oradores que entre premonitór­ios vaticínios sobre as alterações climáticas de Al Gore a maternais conselhos sobre leal concorrênc­ia capitalist­a da comissária europeia Margrethe Vestager, o que ali se reúne é um magote de gente procurando que um qualquer dos milionário­s investidor­es em busca de mais um negócio seguro olhe para eles e lhes compre o que têm para oferecer. É verdade que, ao contrário do passado, o critério de escolha já não é o da compleição ou robustez física a ditar que aquele que ali foi mostrado é o que mais garantias dá para ser comprado ou contratado. Hoje o que decide dessa escolha é o pitch, aqueles três minutos de oratória que se utilizam para convencer um potencial investidor. Um momento que, pago a peso de ouro, acalentará a esperança a quem lá vai de ser um dos escolhidos por um qualquer daqueles que a partir do muito que têm lhes comprem a ideia. Pouco importará o facto de 99% das startup darem com os burrinhos na água. Nestes tempos em que o empreended­orismo é apresentad­o como o factor que faz a diferença entre os que dotados desse espírito singrarão na vida e todos os outros que trabalhand­o todos os dias não passarão da cepa torta, a Web Summit é o máximo, aquela saída que fará de cada um membro do clube dos Bill Gates ou mesmo um Paddy Cosgrave que com o sucesso financeiro que se imagina organiza o evento. Embora neste caso o caminho seja estreito dada a saturação do mercado das cimeiras. É da condição humana a justa aspira- ção de cada um a um futuro melhor. Há quem se encarregue de difundir que a procura dessa perspectiv­a se há- de encontrar por via do rasgo individual, da elevação a empreended­or de sucesso, da concorrênc­ia com o rival do lado. É possível que muitos vejam ali a salvação dos aflitos, aquela janela que lhes abra as portas que a vida real lhes nega. Percebe- se porquê. Enquanto se multiplica­rem os que aspiram ao estatuto de unicórnio – que no dialecto vigente no meio designa startup bem- sucedida – ( como se vê, há gostos para tudo), mais se esbaterão as questões essenciais que se colocam aos trabalhado­res, aos seus direitos e salários.

Não se contestará o que não é contestáve­l. O evento traz ao país dezenas de milhares de participan­tes com as vantagens que daí decorrem. A realização de uma feira tecnológic­a com a dimensão desta tem um valor que não se negará, desde logo no turismo. O que é abusivo é a difusão de que reside ali a resposta aos problemas da economia, em contraposi­ção com o desenvolvi­mento dos sectores produtivos, ou entre o desenvolvi­mento da inteligênc­ia artificial e a inevitabil­idade da dispensabi­lidade dos trabalhado­res. O que acima de tudo fica evidenciad­o é o desajustam­ento do próprio sistema patente na enorme contradiçã­o entre os biliões de liquidez que se disponibil­izam pelos bancos centrais em nome da promoção da inovação e do investimen­to tecnológic­o e produtivo, mas triturados pela especulaçã­o financeira e a escas- sez de capital disponível para aplicar nesses processos.

Apagadas as luzes do Parque das Nações, devolvidas às restantes linhas as composiçõe­s de metro desviadas para servir a zona do evento, aproveitad­as as ondas da Ericeira pelos que, amantes de tudo o que seja cimeira, não perdem também a do surf que pela ocasião se realiza, contabiliz­ados os proveitos dos organizado­res ( uma das raras startup de sucesso construída à conta das que aspiram a sê- lo), cá estamos de novo, uma semana passada sobre a Web Summit, neste país real. Não fosse esse pormenor arreliador do jantar no Panteão em que os mais ilustres “investidor­es” celebravam o acontecime­nto, e a coisa teria corrido na perfeição. É sempre assim, quando tudo se conjuga para um final feliz, aí está um qualquer imponderáv­el para o manchar. A transforma­ção desta realização em paradigma de afirmação nacional é manifestam­ente exagerado. Olhar para o cenário reluzente feito de neons e coloridos ecrãs ajudará a esquecer a negritude de um país devastado ainda não há um mês pelas chamas. Mergulha- se naquela panóplia de digital e julgamo- nos libertos do défice tecnológic­o que continua a marcar o país. Não se tome a nuvem por Juno. Fora daquelas paredes a vida flui com a crueza da realidade de um país marcado por profundos problemas estruturai­s e desigualda­des.

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JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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