João Medina: “Puigdemont é uma figura burlesca”
Oponto de encontro, mesmo a calhar, é o Ponto Verde. João Medina escolheu este restaurante em Alcabideche depois de hesitar um pouco sobre como estaria o tempo, chegando a pensar no Baiuka, perto de Cascais, onde se vê o Atlântico e se pode apanhar um pouco de sol. Pois do Ponto Verde não se avista mar algum, mas “come-se bem”, assegura-me o historiador de 78 anos, conhecedor dos cantos à casa e que me avisa de que as doses são abundantes. Conhecemo-nos há uns anos, quando João (como sempre me pediu para o tratar, mesmo que por vezes me saia o professor) publicou um livro sobre os Estados Unidos e o entrevistei para o QI, suplemento cultural do DN. Depois, foi um dos cinco historiadores que convidámos para contar a história de Portugal e do mundo nas revistas que em 2014 celebraram século e meio de jornal. O pretexto para esta conversa (como se tal fosse necessário) é a próxima publicação da sua autobiografia, intitulada Memórias de Um Estrangeirado, referência a uma vida que começou em Moçambique, teve uma etapa angolana e outra sul-africana, depois outras em Portugal e Moçambique, a seguir França, Portugal de novo, por fim três nos Estados Unidos que também deixaram marcas, como veremos na forma desiludida com que fala dessa América que elegeu há um ano Donald Trump, político que descreve como “um alucinado”.
Servimo-nos ambos de queijo fresco e por sugestão do meu entrevistado vêm para a mesa também umas amêijoas à Bulhão Pato. Ainda mal nos sentámos e já falámos da Catalunha e de como o líder independentista Carles Puigdemont “é uma figura burlesca, com ar de irmãos Marx”, de como Salazar jantava sempre só com uma outra pessoa à mesa e com ordem para não ser inter- rompido “nem que o mundo acabasse” e, claro, de Trump.
João é um poço de cultura, um fabuloso contador de histórias e um historiador com uma produção esmagadora. Entre os seus livros há títulos tão diversos como Sidónio Pais - O “Presidente Rei”, A Minha América, Portuguesismo(s) ou Caricatura em Portugal. E também escreveu romances, como Os Náufragos do Mar da Palha. A enumeração é minha, mas Portuguesismo(s), um livro dedicado àquilo que nos singulariza como povo, sei que é especial para o historiador.
Também a história de João é bem singular. Um dos seus antepassados aderiu aos ideais liberais e num momento dos absolutistas em alta é deportado da Madeira com a família para a costa africana de Portugal. Lá convence o capitão do navio a aceitar que Cabo Verde entra na definição e assim começa a saga dos Medina naquele arquipélago. Um século mais tarde, é o pai do próprio João, um cabo-verdiano, que percorre a África portuguesa como administrador colonial, da Guiné a Moçambique, com Angola pelo meio. Republicano convicto, ficou desiludido com o caos da Primeira República e aliviado com a estabilidade que Salazar trouxe.
Assim, o nosso futuro historiador nasce em Moçambique, em 1939, na então Lourenço Marques, hoje Maputo. Miúdo ainda vive um tempo em Angola, depois regressa a Moçambique e o pai é nomeado para um cargo bem colonial, o de “curador dos negócios indígenas” na África do Sul. João viverá assim entre os 4 e os 7 anos no país que mais tarde oficializará o racismo como o sistema de apartheid. Pergunto se mesmo muito criança teve alguma experiência com o racismo oficial: “Não tive. O apartheid é instituído já depois de eu estar na África do Sul. Já existia na prática, mas a legislação não estava ainda aprovada. Só nos dávamos com a comunidade judaica ou com a comunidade inglesa.” Insisto, perguntando se se lembra de ter miúdos negros no colégio onde estudava: “Não, não. Nunca vi negros em Joanesburgo. Sabia que havia autocarros que evidentemente diziam em africânder e em inglês ser só para negros. Nós não entrávamos nesses autocarros. Era uma população paralela com a qual nunca nos misturávamos. Tínhamos apenas um criado que vinha ao fim do dia limpar a casa e fazer o jantar e não podia dormir lá. Mas excecionalmente ao sábado e domingo, ele tinha um quarto lá em casa, mas isso era gravíssimo perante a lei. Se alguém nos denunciasse… era um negro moçambicano.”
Embora vizinho e muito influenciado pela África do Sul, o Moçambique colonial era diferente, como testemunha João, que, entretanto, pede uma cerveja preta para acompanhar as amêijoas. Para mim uma imperial, e isto sem quaisquer jogos de palavras, apesar de estarmos a comparar experiências africanas. “Moçambique era completamente diferente. A experiência que eu tive, e que mais tarde se refletiu numa conversa muito importante com o meu pai, foi quando já andava no final do liceu e ia passar férias em Nacala, onde o meu pai estava colocado como administrador, e uma vez fizemos uma grande viagem de três dias por grandes plantações suíças de algodão, café e sisal. Disse ao meu pai: ‘Tu estás aqui para manter a ordem para que os suíços possam fazer negócio, e até o tabaco que fumamos é tabaco deles que eles exportam para a Suíça e depois vendem para Portugal. Portanto, a tua presença aqui é inútil, porque é só para manter a ordem para que os outros tirem proveito?’ O meu pai respondeu: ‘Eu não tenho culpa que os investidores portugueses não queiram investir em Moçambique.’ Eu disse: ‘Isso não me parece um argumento muito forte.’ Foi o começo do meu anticolonialismo, que depois já como aluno da Faculdade de Letras de Lisboa me levou a fazer a greve de 62 e entrar naquilo a que se pode chamar a oposição clara e aberta, para grande desgosto do meu pai, ao regime”, conta o historiador.
Sei que estou a entrar em terreno fértil, de grandes e pequenos episódios de João em Lisboa já jovem adulto, mas peço-lhe que volte um pouco atrás, ao tempo em que a família estava em África e o mandou para o Colégio Militar, que detestou. E como foi um padre que escreveu à mãe a dizer como ele era lá infeliz e que o dali tirasse. “Para lhe agradecer a intervenção dele, chegado a Moçambique com passagem por Itália, e como tinha comprado em Roma um guarda helvético do Vaticano, mandei-lhe numa caixa esse boneco e juntei uma fotografia que a minha mãe tinha minha diante do Coliseu. Recebi de volta uma carta dele, o padre Braula Reis, que me comoveu muito: ‘Muito obrigado pelo envio do guarda helvético, mas sobretudo gostei de ver o leão fugido do Coliseu.’” Esta foto foi escolhida por João Medina para a capa destas Memórias que aí vêm e que param em 1974.
Para pratos principais, João pede medalhões enrolados em bacon. Eu aposto no polvo à lagareiro. Quando ambos os pratos chegam à mesa, recordo-me do alerta inicial para o tamanho das doses. Do polvo mesmo assim nada sobrou, mas dois medalhões ficaram no espeto pendurado em que foram servidos. Comida abundante, também saborosa, a confirmar o porquê da escolha.
Viagem imediata para a década de 1960, onde o aluno que foi de Direito e depois se transferiu para Histórico-Filosóficas, por causa de uma zanga com um professor em torno do uso da gravata, fez das suas. “Andávamos a pintar com nitrato de prata as paredes com frases do género ‘fim à guerra colonial’, ‘acabe-se com a censura’, ou ‘abaixo a PIDE’. Pintávamos os muros e os degraus da entrada dos edifícios das faculdades de Letras e de Direito. Havia estudantes de um lado e do outro, que controlavam se vinha alguém. Levávamos um boião de água, púnhamos lá dentro três charutos de nitrato de prata, aquilo dissolvia-se completamente, tornava-se invisível, e com uma brocha média pintávamos com letras enormes essas frases antissalazaristas, ainda à hora dos autocarros que partiam de Santa Maria. Esses momentos nós disfarçávamos e depois continuávamos a pintar. Terminada a missão, voltávamos para o café Chiado para estudar e preparar as aulas dos dias seguintes. E no outro dia de manhã as letras estavam preta”, conta, entre risos.
É dessa época que data também o convite para ser militante do PCP em 1963, feito por um antigo estudante do Colégio Militar, que reconheceu. “Tinham muitas regras, muitas imposições, mas acabei por recusar por causa do antissemitismo que houve em vários momentos do movimento comunista internacional e que eu achava que o PCP não tinha condenado”, explica João. Olho para o homem que à minha frente está a comer um pedaço de bacon e tenho dificuldade em ver um judeu.
“Levávamos um boião de água, púnhamos lá dentro três charutos de nitrato de prata, aquilo dissolvia-se completamente, tornava-se invisível, e com uma brocha média pintávamos com letras enormes essas frases antissalazaristas, ainda à hora dos autocarros que partiam de Santa Maria”
O historiador conta que os Medina tinham antepassados judeus e por isso se considera um marrano, mas que a relação que tem com o judaísmo é muito pessoal: “Sou um grande leitor do Pentateuco e da mística judaica. Tenho um fundo agnóstico que me aponta para outra via mais cristã, mas sinto muita consonância com aquilo que se pode chamar a espiritualidade e a história judaica. Por isso explica que dos diversos livros que tenho escrito um deles chama-se Auschwitz e Moscovo.” Teve também uma boa relação com Israel, conta, chegando a colaborar com um antigo embaixador em Lisboa sobre os projetos de colonização judaica em Angola, mas agora confessa estar profundamente desiludido com a orientação política de Israel, “uma orientação política ortodoxa, extremamente conservadora”. E acrescenta que “em Israel devia haver duas nações, ou as nações palestiniana e a nação judaica podiam coabitar lado a lado com milhares de outros sítios do mundo, em que comunidades de distinta religião e distinta língua conseguem coabitar”.
Já licenciado e casado com Guida Miriam, colega na Universidade de Lisboa e também marrana, parte para Estrasburgo com uma bolsa de doutoramento da Gulbenkian. E apanha o Maio de 68. “Foi muito engraçado porque ocupámos a única parte importante de Estrasburgo, que é uma praça clássica onde só há hotéis de grande categoria. Ocupámos os quatro cantos da praça com comités nossos com bandeiras e gritos. A universidade aderiu toda a nós, todos os estudantes e todos os professores aderiram ao espírito de 68, mas não houve confrontos nenhuns com a polícia. Uma vez fomos manifestar contra um jornal bastante conservador de Estrasburgo e que fazia relatos das nossas ações tendenciosos e hostis. Aí a polícia apareceu, mas como nos limitámos a bradar uns quantos insultos e fomos embora, nada aconteceu. Depois, em princípios de junho, fui a Paris, já tinha acabado a greve da gasolina, e fiquei num hotel, e quando me dirigia para o hotel vi a última barricada a ser erguida no que é Saint-Michell. Estava a ver aquilo com uma maleta na mão, sentado num banco, a ver os estudantes a dobrar o alcatrão como quem dobra um tapete, fiquei espantado como era fácil, e depois debaixo dos pedregulhos havia areia… a tal praia, e então percebi o sentido profundo da frase “sous les pavés, la plage”.
Em Estrasburgo, em 1969, nasceu Daniel; dois anos depois, em Aix-en-Provence, onde começou a dar aulas, foi a vez de Sibila. Mas esta existência francesa, quase idílica, acabou de um dia para o outro, quando o fim da ditadura fez a família encher uma carrinha com as coisas da casa, “sobretudo livros”, e voltar a Portugal.
Está na hora de pedir a sobremesa, só uma maçã assada para João, quando pergunto como soube do 25 de Abril. “Nessa noite dormi mal, tive uma insónia, acordei um pouco atrasado. Havia uma conferência-debate no departamento de estudos portugueses e brasileiros em que eu tinha de participar na universidade onde eu ensinava, na Provença. Cheguei um bocado atrasado e estava toda a gente a olhar para mim com ar muito grave e só no meio da conferência é que um brasileiro se aproximou de mim e disse: ‘Houve uma revolução militar no seu país.’ Acelerei a participação na conferência, fui a correr para casa, a minha mulher estava a ouvir na rádio e na televisão, fomos buscar as nossas crianças à escola, e a diretora, que era muito nossa amiga, falou-nos ‘ah que horror, uma revolução militar no vosso país’. E nós respondemos-lhe: ‘Pior do que estava é impossível, isto significa que o regime vai acabar”, relata.
A Portugal chega a 10 de junho de 1974. Recebe vários convites de universidades, mas graças a Almeida Santos, figura importante do PS, ministro da Comunicação Social e amigo do pai em Moçambique, acaba por ir parar em 1975 a diretor-geral da Divulgação, no Palácio Foz. Coordena ainda uns livros interessantes, com temas como Eça, o bacalhau ou Bordallo Pinheiro, mas não aprecia certas manobras políticas e, além disso, prefere não se inscrever como militante socialista. Em 1979, começa a dar aulas na Faculdade de Letras, onde fica até à reforma. Como bom estrangeirado que se orgulha de ser, vai por três vezes para os Estados Unidos ensinar, uma vez na Johns Hopkins, em Baltimore, e duas na Brown, onde está Onésimo Teotónio Almeida, amigo de João e figura incontornável da comunidade luso-americana, que conheci neste ano numa visita a Providence em reportagem. Falamos dos Estados Unidos, que deram tema de um livro a João, e é evidente o seu descontentamento com Trump: “Estou profundamente desolado como é que um demagogo pode dirigir um dos maiores países do mundo e um dos países com mais responsabilidades na política mundial.” Questiono se não dá o benefício da dúvida ao presidente americano, e a resposta é arrasadora: “Nenhuma. Considero que é um alucinado, perigoso, pior do que Richard Nixon, e é realmente um demagogo do pior que a história americana já produziu. É difícil escolher um presidente que seja pior que ele.” Sobre as razões porque tanto milhões de americanos votaram no magnata, João diz: “Percebe-se que a candidata democrata foi mal escolhida, provavelmente. E sobretudo creio que há uma espécie de balança que oscila para um lado e para o outro e que depois dos democratas traz os republicanos, e que dentro dos republicanos este infeliz dirigente, este alucinado, conseguiu captar o voto americano, e receio que isto acabe mal.”
Bebemos os cafés e acabamos por falar da Catalunha, tema quente e mesmo aqui ao nosso lado. O historiador classifica de “tontería” o que se esta a passar e explica: “Penso que a Catalunha é um país interessante, com grandes pintores, grandes escritores e grandes artistas, basta pensar em Miró, que tanto nos orgulhamos de ter agora no nosso museu obras dele, mas acho uma tontería que a Catalunha se queira tornar independente. Não faz sentido nenhum. É absurdo. É um delírio nacionalista mais do século XIX do que do século XX, e muito menos ainda do século XXI, que na construção de uma Europa federal vamos buscar nacionalidades marginalizadas, ou marginais, com uma língua que nem toda a gente fala, nem mesmo na própria terra deles. Acho que não faz.” E, claro, João Medina não vê o “burlesco” Puigdemont como o homem capaz de fazer a Catalunha uma república independente, como supostamente foi proclamada.