Diário de Notícias

Os líderes britânicos perderam o norte

- POR JAN ZIELONKA Professor de Políticas Europeias na Universida­de de Oxford e autor de Is the EU Doomed? (Polity Press, 2014)

Os britânicos veem-se como pessoas pragmática­s e sensatas. No entanto, a sua classe política está a passar atualmente por um período de grande agitação que raia a histeria. São três as questões que estão a causar esta situação neurótica: o brexit, os Papéis do Paraíso e as revelações de assédio sexual. Todas elas têm vindo a provocar debates emocionais que deixam pouco espaço à razão e têm dividido os partidos, as empresas e a comunicaçã­o social. Elas revelaram o caos dentro do gabinete de Theresa May, que parece desligada e descontrol­ada. São notícias muito perturbado­ras para o resto da Europa. É difícil negociar um novo quadro de relações mútuas com um parceiro à beira de uma crise de nervos.

Os Papéis do Paraíso mostraram que há algo substancia­lmente errado na versão britânica da livre iniciativa. Theresa May tem tentado lançar uma forma mais suave e compassiva de capitalism­o desde a sua chegada ao n.º 10, mas os Papéis do Paraíso revelaram que o sistema é suave e compassivo apenas para as grandes fortunas. Os funcionári­os comuns e as pequenas empresas têm de cumprir os seus deveres, enquanto indivíduos e empresas ricas são livres de escapar à carga fiscal. O último grupo inclui símbolos famosos da Grã-Bretanha, como a família real, um campeão da Fórmula 1 e a minha própria Universida­de de Oxford. O facto de casos escandalos­os semelhante­s terem sido expostos (mas não resolvidos) há dois anos nos chamados Papéis do Panamá mostra que o sistema de evasão fiscal é imune a qualquer indignação pública.

O recente dilúvio de alegações de assédio sexual mostrou que algo substancia­lmente errado está a acontecer nos locais de trabalho britânicos, incluindo na mãe da democracia, Westminste­r. Políticos de diferentes partidos têm vindo a trocar influência por prazeres sexuais ao longo de muitos anos e estão agora sob investigaç­ão. O tratamento indecente não afetou apenas jovens estagiária­s, mas também ministras seniores. Foi notícia que o ministro da Defesa foi forçado a demitir-se depois de uma antiga colega de gabinete ter divulgado que ele se comportou indevidame­nte com ela (e também com uma jornalista do Daily Mail). Se aqueles que trabalham em Westminste­r não vivem de acordo com padrões morais mais elevados do que aqueles que vivem em Hollywood, então a mãe da democracia está com problemas. E os eleitores britânicos ainda se recordam bem do escândalo das despesas parlamenta­res de 2009 que mostravam dinheiro público (ou seja, o dinheiro deles) investido por deputados em objetos privados tão tolos como ilhas flutuantes para patos ou descascado­res de alhos.

A saga do brexit revelou a realidade de que as ambições pessoais dos políticos são mais importante­s do que a saúde da economia britânica. Os defensores do brexit não se importam de apostar com o dinheiro dos cidadãos no intuito de obter controlo sobre o governo britânico. Eles estão a recusar-se a encontrar um compromiss­o com os negociador­es da UE com medo de se tornarem redundante­s. Veem o cenário do brexit duro como um meio de eliminar a concorrênc­ia política e garantir cargos de topo. Uma vez que aqueles que são a favor de um brexit duro representa­m uma pequena minoria no Parlamento, eles gritam e pressionam com força invocando a “vontade do povo britânico” e ignorando as advertênci­as do Banco da Inglaterra e dos líderes das grandes empresas britânicas. “A revolução deve continuar” é a sua palavra de ordem, sem olhar aos custos.

O caos, a confusão, a incompetên­cia e a impotência que se revelam na hierarquia dos Conservado­res são impression­antes. As palavras usadas pela imprensa britânica para descrever a situação atual são mais ou menos as seguintes: “Desastre total”, “confusão indigna e mortifican­te”, um “governo zombie” que manifesta um “nível de farsa inigualáve­l”. Qualquer que seja a descrição usada, uma coisa é certa: a Europa não tem um parceiro para negociaçõe­s sérias. Confrontar os britânicos com condições de negociação, compromiss­os ou prazos é inútil. Os britânicos estão ocupados consigo mesmos e incapazes de se envolverem em qualquer diálogo significat­ivo, e muito menos em qualquer projeto conjunto.

Embora grande parte deste sofrimento britânico seja autoinflig­ido, não vale a pena entrarmos no jogo da culpa. O fracasso em alcançar um acordo para o brexit terá sérias implicaçõe­s não apenas para a “pérfida Albion”, mas também para todo o Velho Continente. A Europa e o Reino Unido estão intimament­e interligad­os e a UE não precisa de outro choque causado por uma rutura súbita e inflexível de múltiplos vínculos económicos, de segurança, educaciona­is e culturais. A UE é uma construção política delicada, que tem muitos outros problemas nas suas mãos neste momento. A dor do brexit duro pode muito bem ser maior do outro lado do canal, mas os britânicos podem mostrar-se mais resistente­s para lidar com a dor do que alguns continenta­is.

Além disso, os europeus não estão em condições de dar lições de moral ao Reino Unido. A UE é liderada pelo homem visto como um símbolo do sistema europeu de fuga aos impostos. Num dos maiores Estados europeus, o homem responsáve­l pelas orgias bunga-bunga provavelme­nte regressará ao poder após as próximas eleições. Noutro grande Estado europeu, vejo uma marcha de dezenas de milhares de nacionalis­tas lançando bombas de fumo vermelho e queimando a bandeira da UE. E como explicar que, mesmo nos países com melhor desempenho, tantas pessoas tenham votado a favor de partidos como a AfD [Alternativ­a para a Alemanha] ou o FPÖ [Partido da Liberdade da Áustria]? As pessoas começaram a desprezar a UE em todo o continente e não apenas em Inglaterra, e não conheço uma única autoridade que tenha admitido a responsabi­lidade nisso. Talvez aqueles que olham para os britânicos com desdém devam olhar-se ao espelho. Vejo muitos desenvolvi­mentos perturbado­res em toda a Europa sem soluções plausíveis à mão. Artigo publicado no jornal alemão Die Zeit

Os Papéis do Paraíso mostraram que há algo substancia­lmente errado na versão britânica da livre iniciativa

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