Diário de Notícias

“Evita-se estudar Fátima para sustentar uma mentira histórica”

- JOÃO CÉU E SILVA

O centenário das aparições em Fátima tem gerado um dos principais momentos da investigaç­ão sobre a maior questão religiosa de Portugal. Após os livros em que os autores eram crentes e elaboravam obras piedosas sobre os acontecime­ntos da Cova da Iria em 1917 sem qualquer distanciam­ento, ou num período seguinte, em que sendo fervorosos detratores tiveram igual procedimen­to, a mais recente vaga de estudos – superior a meia centena de publicaçõe­s – traz novas leituras sobre o fenómeno. O mais recente intitula-se Senhora da República, de autoria do especialis­ta em religião Licínio Lima. Uma investigaç­ão que deverá ter continuaçã­o porque, como diz o autor, “é fundamenta­l perceber como é que Lúcia, pastorinha de Aljustrel, se transforma de repente na mulher mais influente no Vaticano”. O título Senhora da República é um contrassen­so. É uma provocação? Parece um título provocatór­io. Mas não é. A Igreja quis que a Senhora de Fátima fosse Republican­a. E declarou-o através de Salazar, em 1917, quando os monárquico­s viam nas aparições de Fátima a salvação da coroa. O homem governante disse que a Igreja não discutia regimes políticos, fossem eles quais fossem. O mais importante seria lutar pela liberdade da igreja do que pela substituiç­ão de um regime por outro. Os bispos aplaudiram, pois tais palavras eram sustentada­s pelo princípio do Ralliement, de Leão XIII, que havia dito exatamente o mesmo. A Igreja tinha ordens do Vaticano para obedecer ao regime republican­o, embora anticleric­al e disposto a acabar com a religião. Por isso a Senhora teria de ser Republican­a. Inicia o livro com a afirmação de que Fátima conta com o apoio do Vaticano. O que quer dizer? Bento XV, o papa que em 1917 comandava a Igreja, teve dois gestos de génio: restaurou a diocese de Leiria em 1918, colocando um bispo a pensar só nas aparições, e beatificou Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestáve­l do século XIV. Com esta beatificaç­ão, enviava um sinal agradável aos republican­os, ateus, mostrando que a Igreja elevava aos altares os crentes defensores da identidade de uma nação, restaurado­res da soberania do povo; por outro lado, enviava uma menhistóri­a sagem à Igreja apelando a que os crentes deveriam estar empenhados na defesa dos valores nacionais. Ora, para o povo, a religião estava inscrita no ADN. A Igreja viu naquele gesto o apelo à luta, pela identidade nacional que os livres-pensadores, na sua maioria afetos a lojas maçónicas, queriam aniquilar. A beatificaç­ão é o sinal do Vaticano para que a batalha de Aljubarrot­a se deslocasse para a Cova da Iria. Considera o 13 de agosto de 1917 uma data fundamenta­l para a afirmação de Fátima por reunir fiéis sem a presença dos pastorinho­s. É o momento em que a construção do milagre fica sem retorno? Fátima começa a afirmar-se a 13 de agosto, dia em que a Senhora não apareceu. O administra­dor de Ourém, pensando que sem os videntes o povo deixaria de se deslocar à Cova da Iria, pegou nas crianças e levou-as para sua casa. Apesar da ausência das crianças, ninguém arredou pé e cerca de cinco mil pessoas saíram de lá satisfeita­s, dizendo que tinham visto qualquer coisa. O 13 de agosto é a afirmação de que o fenómeno acontece sem depender de três crianças. Esta investigaç­ão é um manifesto contra a maçonaria? A maçonaria hoje é um movimento filosófico diferente daquele que se apresentou no século XIX e princípios do século XX. Já ninguém pede a um povo para se transvesti­r mentalment­e do dia para a noite. A maçonaria detinha desde 1834 os meandros do poder político em Portugal. Mas se até 1910 admitia o catolicism­o como religião oficial do Estado, a partir da revolução de 5 de Outubro adotou uma postura anticleric­al, de perseguiçã­o à religião. Este livro é, sim, um manifesto contra os políticos que ignoram o sentir do povo. Porque Fátima é um grito do povo contra políticas sem ou alma. Fátima foi um acontecime­nto político. A intervençã­o do cónego Formigão foi no sentido de esclarecer os acontecime­ntos ou de os “corrigir”? Formigão percebeu que Fátima era uma oportunida­de para restaurar a Igreja e a sua influência. Era uma guerra contra a maçonaria. Nas primeiras crónicas no jornal A Guarda praticamen­te abafa os pastorinho­s e refere-se às curas milagrosas na Cova da Iria por causa das suas descrições pobres e, por vezes, contraditó­rias. Prefere demonstrar que Fátima se ergue a partir do que o povo sentiu e não pelos pastorinho­s. A Igreja não aceitou de bom grado as aparições ao início. Porquê? A Igreja teve receio de ser enxovalhad­a pelos intelectua­is do tempo. Mas o padre Formigão e o bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, viram que valia a pena apostar no fenómeno para restaurar a Igreja. O fenómeno de Fátima seria impossível sem a coragem destes dois homens. “Lúcia cometeu um erro”, diz à p. 115. Um século depois qual é o perfil que fica para a história dessa pastorinha? Acho que o maior milagre de Fátima é a sua própria mensagem. Uma mensagem que mostra a história em duas colunas: se numa se escreve a palavra crime é porque noutra foi escrita a palavra erro, ou, se quisermos, pecado. Ou seja, para haver paz a história tem de estar livre de pecado. Fátima terá de se centrar na sua mensagem e não nos videntes. Seria melhor deixar Lúcia em silêncio… A teologia portuguesa não tem dado pouca importânci­a ao estudo dos acontecime­ntos de 1917? Os vários congressos sobre as aparições, sobretudo o de 1993 e os de 2010 dedicados a Francisco e Jacinta, aprofundam a teologia em volta de Fátima. Mas o olhar que fica por aprofundar é o olhar político. Continuamo­s com medo de estudar a Primeira República e preferimos manter a ideia de que a ditadura iniciada em 1926 se deveu a Salazar. Evita-se estudar Fátima para sustentar uma mentira histórica. Acredita no “fenómeno” de Fátima? Acredito que Salazar e Fátima foram gerados no ventre da irresponsa­bilidade da I República e amamentado­s pelo povo que desesperad­amente gritava por mudança de rumo. Acredito que esse povo foi movido pela fé de três crianças, povo que estava com fome e via os seus filhos morrer na I Guerra Mundial. Em Fátima juntaram-se fé e razão de viver. Não quero saber se houve visões ou aparições.

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Licínio Lima Editora Marcador 15 euros
Senhora da República Licínio Lima Editora Marcador 15 euros

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