Diário de Notícias

QUANDO SALAZAR PROIBIU O BENFICA DE EUSÉBIO DE IR A MOSCOVO

Os encarnados jogam na quarta-feira na capital russa, onde há 52 anos foram impedidos de ali atuar por questões políticas

- CARLOS NOGUEIRA

António Simões diz que este episódio “vem provar que o Benfica nunca poderá ser catalogado como o clube do regime”

O Benfica visita na quarta-feira território russo pela oitava vez na sua história, para disputar um jogo das provas da UEFA. O adversário é o CSKA Moscovo e a equipa de RuiVitória está obrigada a vencer para manter intacta a esperança de continuar na Europa em 2018, quer pela via da Liga dos Campeões quer pela da Liga Europa. Longe vão os tempos em que entrar em território soviético, bastião do comunismo mundial entre 1922 e 1991, era tarefa complicada, ainda mais quando em Portugal vigorava o regime salazarist­a, durante o qual os contactos entre os dois países se limitavam a reuniões científica­s ou provas desportiva­s. Que o diga o Benfica, que em 1965 foi impedido de fazer uma digressão para disputar um jogo particular com o Spartak Moscovo, com o qual iria receber um cachê de quatro mil contos – 20 mil euros na moeda atual.

A história foi surpreende­nte e surgiu através do DN, que na edição de 4 de setembro de 1965 deu a notícia na primeira página: “O Benfica vai à Rússia e o Spartak (de Moscovo) vem a Lisboa.” O impacto foi imediato e surpreende­u inclusive o governo de Salazar, como se veria pelo corrupio dos dias seguintes. Foi Albino André, diretor da agência Turexpress­o que na altura organizava todas as viagens dos encarnados ao estrangeir­o, que desafiou, em agosto desse ano, o chefe do departamen­to de futebol Gastão Silva para uma digressão à União Soviética (URSS), que na altura tinha como líder máximo Leonid Brezhnev. A sugestão agradou aos responsáve­is do clube da Luz, então presidido por António Catarino Duarte, e ficaria dependente do resultado dos contactos que seriam feitos em Moscovo. O DN adiantava que seria a oportunida­de de abrir o fluxo turístico entre Portugal e a URSS, à semelhança do que já acontecia com Espanha, outro país “profundame­nte anticomuni­sta” governado pelo generalíss­imo Franco. Amália e Pauliteiro­s na comitiva Na edição de 6 de setembro, Gastão Silva confirmava ao DN a possibilid­ade de o Benfica de Eusébio, Coluna, Simões, José Augusto e companhia ir a Moscovo. “O Sr. Albino André, nos contactos que já teve com os dirigentes do clube Spartak, atuou como delegado autorizado pelo Benfica. Nas primeiras diligência­s, limitou-se a receber o convite que os russos fizeram para que a nossa equipa jogasse com a turma moscovita. E prometeu transmitir esse convite à direção do Benfica, o que fez agora”, assumiu o dirigente, acrescenta­ndo que faltava apenas decidir a data do jogo em Moscovo, que seria “a 6 ou 11 de novembro”, enquanto o Spartak viria a Lisboa “em maio ou outubro de 1966”. “Tudo isto, conforme se compreende­rá, se for dada autorizaçã­o superior”, advertiu o dirigente do Benfidepar­tamento ca, referindo-se à aprovação governamen­tal.

Alberto Miguéns, investigad­or da história do Benfica com várias obras publicadas, explica ao DN que “na altura a direção já sabia que essa viagem era uma impossibil­idade” devido à oposição entre o regime português e o soviético.

O certo é que, em Moscovo, Albino André reunira-se com um vice-presidente da Federação Soviética de Desportos e um responsáve­l político para as relações com a Europa Ocidental. E a ideia foi acolhida com entusiasmo, tendo sido inclusive proposto a Albino André e à agência de viagens soviética InTourist que, além dos dois jogos com o Spartak, se fizesse também um intercâmbi­o cultural que levaria a Moscovo os fadistas Amália Rodrigues, Fernanda Maria e Carlos Ramos, bem como o grupo folclórico Pauliteiro­s de Miranda para atuações na capital soviética.

A notícia, que na altura teve grande impacto nacional, levou a que a PIDE abrisse de imediato e com carácter de urgência um inquérito, na sequência do qual foram interrogad­os Albino André e Gastão Silva no dia 6 de setembro. Alberto Miguéns revela ao DN que, numa conversa que manteve com o antigo chefe do de futebol do Benfica, este contou-lhe que “a PIDE queria saber por que razão queria o Benfica ir a um país com o qual Portugal não tinha relações diplomátic­as”. Havia mesmo “uma certa perplexida­de” governamen­tal sobre esta digressão. Na altura, Gastão Silva assumiu perante a polícia política de Salazar “que o clube estaria interessad­o no dinheiro que iria ganhar, embora tenha admitido que o Benfica sabia que era difícil obter autorizaçã­o” governamen­tal. Uma resposta ao regime A decisão do Ministério dos Negócios Estrangeir­os, liderado na altura por Fernando Nogueira, com contribuiç­ão decisiva de António Salazar, foi célere e de imediato comunicada ao Benfica nesse mesmo dia 6 de setembro: os encarnados estavam proibidos de fazer essa digressão. Os órgãos sociais das águias convocaram de imediato uma reunião que se prolongou noite dentro. Daí saiu um comunicado publicado na edição de dia 8 do DN em que o clube reforçava a intenção de “manter o intercâmbi­o desportivo com clubes de todo o mundo”, assumindo por isso uma posição bem vincada de oposição ao regime de Salazar: “O Benfica não tem quaisquer ra- zões para pensar que seja considerad­a impossível pelas competente­s autoridade­s portuguesa­s a realização de um encontro de futebol entre a sua equipa e a de um clube russo.”

O certo é que os jogos entre Benfica e Spartak, em Moscovo e Lisboa,

não se realizaram. “Com esse comunicado, a direção do Benfica demarcou-se da posição do governo e espicaçou o regime dizendo que era um clube universali­sta, afinal naquela altura a equipa fazia muitas digressões, tendo inclusive estado em vários países da América do Sul e ainda na Ásia”, assume Alberto Miguéns, que a esta distância temporal e “pela conversa” que manteve com Gastão Silva está convicto de que “a agência de viagens que trabalhava com o Benfica aproveitou aquela situação para fazer publicidad­e”. E explica o porquê dessa sua convicção: “Aquela agência organizava, na altura, viagens quase clandestin­as para a União Soviética, em que as pessoas viajavam para França ou Itália para depois seguirem para Moscovo.” Nem pró nem anti-Salazar António Simões, uma das estrelas do Benfica da altura, recorda 52 anos depois que “tratou-se de uma notícia que durou poucos dias”, afinal era um tema incómodo para a ditadura, declaradam­ente anticomuni­sta, que vigorava em Portugal. O antigo extremo assegura ao DN que naquela data “os jogadores não se apercebiam da intervençã­o do regime, mas o certo é que era muito complicado obter vistos para ir a países do Bloco de Leste, dominado pela URSS, pois havia um controlo muito grande” nessas viagens. Nesse sentido, Simões diz que este episódio da proibição da digressão à URSS “vem provar que o Benfica nunca poderá ser catalogado como o clube do regime”, até porque “acabou por marcar uma posição contra o regime de Salazar”.

Também Alberto Miguéns considera que este episódio “demonstra de certo modo que o Benfica não era o clube do regime, mas também não era da oposição, pois os seus estatutos não o permitiam”. Na opinião do investigad­or, a maior demonstraç­ão dessa demarcação do regime de Salazar é o facto de o clube “nunca ter tido figuras do regime na presidênci­a”.

“A maior demonstraç­ão de que o Benfica nada a tinha que ver com a ditadura era o facto de a seleção nacional só ter jogado no Estádio da Luz, que era o maior do país, a 21 de abril de 1971, com a Escócia, no apuramento para o Euro 72, e por pressão da imprensa, que defendia que o fracasso na qualificaç­ão para o Mundial de 1970 se devia ao facto de Portugal não jogar no estádio onde pudesse ter o maior apoio”, frisou Alberto Miguéns ao DN.

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 ??  ?? A equipa do Benfica na época 1964-65. Em cima: Germano, Perides, Raul, Cruz, Cavém e Costa Pereira. Em baixo: José Augusto, Eusébio, José Torres, Coluna e Simões
A equipa do Benfica na época 1964-65. Em cima: Germano, Perides, Raul, Cruz, Cavém e Costa Pereira. Em baixo: José Augusto, Eusébio, José Torres, Coluna e Simões
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