Ivanice e as 40 balas
Ivanice Costa, 36 anos. Morena, cabelo farto, cheiinha. Sorri numas fotos, noutras fita-nos séria, expectante. Talvez sonhasse aparecer na TV; apareceu. Na quarta, às três e meia da manhã, estava no carro do namorado, que ia levá-la ao trabalho. Um grupo de sete agentes da PSP, em modo perseguição devido a um assalto na Margem Sul, suspeitou da viatura. Seis abriram fogo. Foram disparados cerca de 40 tiros, 20 dos quais acertaram, a maioria na traseira. Ivanice foi atingida no pescoço, de trás para a frente.
Não conhecemos o relato do cônjuge de Ivanice, só o dos agentes, que a PSP, em comunicado difundido às 12.23 do dia do homicídio, assumiu como seu. Sem quantificar os disparos, justificou-os alegando que o carro “aparentava corresponder às características da viatura suspeita [a dos assaltantes, que fora perseguida pela PSP e perdida de vista]”; “o condutor desobedeceu à ordem de paragem” e “tentou atropelar os polícias”; estes “tiveram de afastar-se rapidamente para não serem atingidos e, em ato contínuo, foram obrigados a recorrer a armas de fogo.”
Traduzindo: os agentes alegam que os tentaram atropelar e abriram fogo em sequência – não para evitar agressão mas em reação a ela. O comunicado não diz como é que tal atuação se enquadra na lei, mas horas mais tarde o homem que até setembro comandou estes agentes, o intendente Jorge Resende, assumiu essa tarefa na TVI: “O uso de arma de fogo contra pessoas só é permitido para repelir agressão atual e ilícita – e se existiu efetivamente uma agressão ou tentativa de agressão, ilícita claramente, designadamente através da tentativa de atropelamento de elemento policial que é atingido e precisou de assistência, parece-me que numa situação destas o uso de arma de fogo está enquadrado.” Acrescentou estar certo de que “nenhum elemento policial tentou atingir os passageiros”.
Resende não esclareceu como é que polícias, com formação de tiro e normas claras sobre quando e porquê podem disparar, desfecham 40 tiros sobre um carro com ocupantes sem intenção de os atingir. Mas é ele mesmo que enquadra o ocorrido no “recurso a arma de fogo contra pessoas”, admitindo assim que os agentes sabiam que estavam, se não a fazer pontaria a quem ia dentro do carro, pelo menos a correr o risco de matar. E não se limita a contradizer-se, cita a lei erradamente: a polícia pode usar arma de fogo contra pessoas “para repelir a agressão atual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros”, mas apenas “se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física” – parte que omitiu. O “pós-tentativa de atropelamento” não encaixa, obviamente.
Não se trata da minha opinião. Leia-se Maria José Leitão Nogueira, subinspetora-geral IGAI e juíza desembargadora, em 2003: “Tem sido recorrente (...) a alegação de atuação a coberto do direito de legítima defesa em situação de disparos efetuados na direção de uma viatura, em consequência dos quais veio a acontecer a morte e ou ofensas corporais quer para o condutor quer para os ocupantes na sequência de tentativa de atropelamento dos agentes de autoridade, por parte do veículo em fuga. (...) Tem-se constatado que a alegação nesse sentido encerra muitas vezes um entendimento erróneo (...). Não é possível configurar uma agressão em execução quando os disparos direcionados ao veículo em fuga ocorrem na sequência da desobediência por parte do condutor em deter a marcha, uma vez ‘transpostos’ os agentes de autoridade alegadamente vítimas da tentativa de atropelamento.”
Mas não é só a esfarrapada desculpa da “tentativa de atropelamento” que é recorrente nestes casos; é-o igualmente a ideia de que se a polícia tem armas de fogo é para usá-las, “confundindo a legitimidade das forças policiais para utilizar a arma de serviço, com a (i)licitude da conduta.” As palavras são de um acórdão de 2013 da Relação do Porto que condena por homicídio um GNR que em 2006 abriu fogo sobre um carro matando um jovem de 21 anos. “A perfilhar-se um entendimento simplista desta natureza, estava aberta a porta para que as forças policiais tivessem cobertura legal para disparar indiscriminadamente (...) sem que a culpa nunca fosse apurada, pois que a ela não se chegaria sequer, porque o acto seria (segundo aquele raciocínio) considerado lícito. É inaceitável esta tese”, conclui o tribunal.
Inaceitável e bárbara. Mas até hoje nenhum tribunal teve a coragem de assumir que um polícia treinado, ao disparar sobre um carro com pessoas quando legalmente nem podia sacar da arma (por desobediência à ordem de parar, por exemplo), comete tentativa de homicídio, agravada pela qualidade do agente – por este ter especial obrigação de não cometer o crime. E nenhum governo demitiu comandos que fazem comunicados desculpabilizantes sobre circunstâncias de um homicídio ao mesmo tempo que anunciam inquéritos sobre elas, ou frisou que a polícia não tem o “direito de disparar”, muito menos de matar, exceto em legítima defesa. O resultado está à vista: 40 tiros disparados contra um carro em fuga, uma mulher morta e um país onde, parece congratular-se a ministra da Justiça, o caso “não provocou alarme social”. De facto, nada que se pareça com o “absolutamente indigno” jantar no Panteão. Ivanice, brasileira e pobre, só morreu.
O caso “não provocou alarme social”, congratula-se a ministra da Justiça. De facto, não é um “absolutamente indigno” jantar no Panteão. Ivanice só morreu