Canções para entender melhor a alma alemã
Preconceitos sempre foram como um veneno nas relações entre diferentes pessoas e povos. Nos últimos anos nota-se um novo aumento de políticas baseadas numa versão simplicista e enganosa que se aproveitam de estereótipos sobre refugiados ou imigrantes, como por exemplo no novo nacionalismo xenófobo de Marie Le Pen, de Geert Wilders ou do partido alemão AFD.
Dito isto, os preconceitos podem ser também a base de uma sátira bem feita, desde que o humorista tenha o cuidado de escolher o seu sujeito no momento certo. Fazer piadas de mau gosto sobre os gregos no auge da crise do euro não tem muita graça, mas ridicularizar o homem mais poderoso do planeta pode até ter um efeito libertador para muitas pessoas que observam com estupefação o comportamento do rei do Twitter de Washington, que, apesar de tanta incapacidade, parece politicamente intocável.
Um dos estereótipos que mais ouço em Portugal sobre os alemães é a ideia de que somos um povo muito racional, frio e com poucas emoções. Não vale a pena tentar conven- cer o leitor de que a minha experiência de vida tenha fornecido dados divergentes. Muito pelo contrário, vou apresentar uma teoria audaz que explora o porquê de os alemães ainda hoje serem considerados os perfeitos alunos do racionalismo.
Como em muitas outras ocasiões da nossa vida, temos de recuar à infância para explicar a veia racionalista de muitos alemães. Enquanto em Portugal as canções infantis são uma mistura alegre e descontraída entre a Bola do Manel e o Atirei o Pau ao Gato, as crianças alemãs aprendem desde cedo que o mundo não é só um lugar cor-de-rosa.
Um clássico da música infantil alemã (Hoppe, Hoppe, Reiter) é uma canção sobre um cavaleiro que sempre cai do cavalo. Numa estrofe, afunda-se numa sebe e vai ser comido por caracóis, noutra estrofe cai numa vala e vai ser atacado por corvos. A mensagem é compreensível: cada vez que uma coisa te corre mal, isso vai ter consequências graves. Tenho, porém, as minhas dúvidas se é realmente necessário utilizar uma imagem tão brutal para explicar essa ideia racionalista a uma criança. No entanto, há um efeito positivo: quando essa criança na vida adulta vê pela primeira vez Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, nada a surpreenderá sobre a violência de certos corvos.
Não é a única canção com a qual as crianças alemãs aprendem o conceito de causa e efeito. Em Fuchs, du hast die Gans gestohlen, uma raposa rouba um ganso e tem de temer pela reação dos seres humanos. Um caçador veste o papel de vingador e ameaça a raposa: “Se tu comes o ganso, eu vou fuzilar-te.” Desde muito cedo, a criança alemã percebe que cada crime tem um castigo que, em alguns casos, poderia significar a pena da morte.
O sentido de que o mundo não é um lugar perfeito até é palpável numa das canções de embalar mais bonitas do mundo (Der Mond ist aufgegangen). Baseada num texto do século XVIII, escrita pelo poeta Matthias Claudius, a canção constata que “nós, seres humanos, somos pecadores vãos, que não sabemos muito, que inventamos histórias e criamos artes, mas que nunca alcançamos o nosso objetivo”. É o fim da quarta e última estrofe e resta esperar que a criança tenha adormecido antes de ouvir esta síntese do pessimismo cultural alemão.
Nos últimos anos da crise do euro, a imagem da Alemanha em Portugal sofreu. A perceção de que Berlim era o motor de uma política de austeridade não ajudou. Mas há uma explicação para todos os que pensam que os alemães têm uma visão fria sobre a crise: já as crianças alemãs cantam uma canção (Oh, du lieber Augustin) que explica em poucas palavras o que aconteceu no sul da Europa: “Tudo está estragado, o dinheiro foi embora, a menina foi embora, tudo foi embora. O casaco e a bengala foram embora, e Augustin está deitado na lama.”
Desde muito cedo, a criança alemã percebe que cada crime tem um castigo que, em alguns casos, poderia significar a pena da morte