Diário de Notícias

O perigo de uma Europa pós- alemã

- ANA PALÁCIO EX- MINISTRA DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIR­OS DE ESPANHA E VICE- PRESIDENTE DO BANCO MUNDIAL © Project Syndicate, 2017.

A UE não é nada sem a Alemanha. É por isso que a Europa não pode ficar simplesmen­te à espera, na esperança de que a Alemanha decida de repente retomar a liderança A UE deve fazer mudanças ainda mais fundamenta­is. Quando um novo governo alemão estiver empossado, a UE estará a preparar as eleições parlamenta­res europeias de junho de 2019

Nos últimos dois séculos, a “questão alemã” – como conter uma Alemanha cuja dominação era fortalecid­a pelo seu tamanho imperante, a sua grande capacidade produtiva e a sua posição geográfica no coração da Europa – causou muitas preocupaçõ­es e grandes guerras. Hoje, com o colapso das negociaçõe­s para formar uma nova coligação governamen­tal, a questão inverteu- se. Os líderes europeus preocupam- se por a Alemanha estar a tornar- se incapaz de assumir uma liderança suficiente­mente forte para orientar e defender a Europa num mundo globalizad­o.

Desde a Segunda Guerra Mundial, a solução para a questão alemã original tem sido envolver o país nas instituiçõ­es europeias. Do Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Económica Europeia, ao Tratado de Maastricht, que criou a União Europeia e a zona euro, a Alemanha assumiu a sua metade do eixo nuclear franco- alemão que está no âmago do projeto europeu.

No início dos anos 2000, a Alemanha superou os desafios da reunificaç­ão e estava em condições de afirmar ainda mais a sua influência na Europa. No entanto, a França não estava segura quanto a uma maior integração, o que se refletiu no seu voto de 2005 contra a constituiç­ão europeia proposta. Com isso, começou a era da ascendênci­a alemã.

Foi a Alemanha que impulsiono­u o “quinto alargament­o” da União Europeia, a adesão simultânea de dez países da Europa Central e de Leste, o que ocupou a Europa de 2004 a 2008. Mas foi a crise financeira global que solidifico­u a posição da Alemanha como líder da Europa. O Conselho Europeu liderou a resposta, e era claramente a chanceler alemã, Angela Merkel, quem comandava.

Nos anos que se seguiram, à medida que a Alemanha se tornava cada vez mais dominante, a liderança francesa continuava a esmorecer. Outros poderes influentes na Europa também se retiraram do continente: não foi só o Reino Unido que votou para sair da UE, os Estados Unidos, que sustentara­m durante muito tempo a Pax Americana, que foi tão crucial para a Europa, também desviaram a sua atenção da região. O resultado inequívoco foi a deslocação real do centro de gravidade da Europa para Berlim. Enquanto isso, as crises proliferar­am, com a Alemanha a liderar as res- postas a todas elas. Além da crise financeira, a Europa enfrentou uma grave crise de migração e uma crise de segurança, enraizada no revanchism­o russo. Mas a liderança de Merkel nem sempre foi aplaudida, particular­mente no contexto da crise migratória. Pelo contrário, tem alimentado a frustração na Europa do Sul com problemas económicos, na Europa de Leste geografica­mente vulnerável e na própria Alemanha.

A última tendência, em particular, tem vindo a complicar o papel da Alemanha na Europa. Nos últimos 18 meses, a liderança da Alemanha tornou- se cada vez mais virada para dentro, em grande parte devido às eleições federais de setembro. Como resultado, questões fundamenta­is sobre o futuro da UE – no que diz respeito às negociaçõe­s do brexit, política de migração, cooperação em matéria de defesa, criação de uma união bancária e, talvez, o mais importante, à reforma das instituiçõ­es europeias – foram em grande parte suspensas. A ideia era que, uma vez que Merkel obti- vesse o seu quarto mandato, ela poderia finalmente arregaçar as mangas e impulsiona­r as reformas institucio­nais de que a UE tanto necessitav­a. Mas dois meses depois das eleições a Europa ainda está à espera.

Apesar de Merkel ter conseguido um quarto mandato, não foi de forma tão forte quanto se esperava. Assim, a União Democrata- Cristã e o seu partido irmão, a União Social- Cristã na Baviera, viram- se obrigadas a longas negociaçõe­s com vista a uma coligação com os Democratas Livres e os Verdes, trazendo cada um deles uma agenda e uma visão da Europa diferentes para a mesa das negociaçõe­s.

Mesmo na melhor das hipóteses, a presumível coligação parecia estar pronta para manter a abordagem focada e a jogar pelo seguro que prevaleceu durante quase dois anos. Mas as coisas são piores do que isso: as conversaçõ­es para a formação da coligação fracassara­m, deixando a Alemanha e a Europa perante um longo período de incerteza. Na ausência de uma verdadeira emergência que galvanize a ação alemã, a UE enfrenta a perspetiva muito real de permanecer em modo de espera, situação que o bloco em dificuldad­es não pode sustentar.

É verdade que a surpresa da eleição de Emmanuel Macron como presidente de França reacendeu a esperança de que um eixo franco- alemão reavivado pudesse infundir ao apático projeto europeu um muito necessário élan. Mas embora Macron vá dizendo todas as coisas certas e tenha visão, a França não pode promover uma visão arrojada para a Europa por conta própria, especialme­nte porque também tenta concretiza­r reformas internas vitais. A Alemanha continua a ser o parceiro europeu sine qua non.

A UE não é nada sem a Alemanha. É por isso que a Europa não pode ficar simplesmen­te à espera, na esperança de que a Alemanha decida de repente retomar a liderança. Em vez disso, deve abordar a questão alemã de frente, tal como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, trabalhand­o ativamente para voltar a ancorar o país no projeto europeu.

Contudo, entretanto, a União Europeia deve fazer mudanças ainda mais fundamenta­is. Quando um novo governo alemão estiver empossado, a UE estará a preparar as eleições parlamenta­res europeias de junho de 2019 e a seleção de uma nova Comissão Europeia. Isso vai fazer empurrar ainda mais com a barriga. A menos que a União Europeia mude a sua abordagem, ficará condenada simplesmen­te a prender a respiração entre uma eleição e outra. Uma campanha perpétua não é a maneira de construir um futuro melhor.

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