Diário de Notícias

“DA MINHA LÍNGUA, O CRIOULO CABO-VERDIANO, VÊ-SE SÉCULOS DE DOR E DE ESCRAVIDÃO”

- ANA SOUSA DIAS

“Saibas tu colher seus cacos de luminosa majestade,/no cadinho do espanto, na cegueira gloriosa,/ nesta rua do mundo, esquina antes do céu”. Assim termina o mais recente livro deste poeta que saiu da ilha para ser escritor. Chegado a Lisboa e já poeta, quis embrenhar-se na filosofia para perceber o que é isto da criação. Da sua poesia sobressai o profundo conhecimen­to da obra dos outros, dos clássicos e dos novos, curioso e atento. Os dois últimos livros são uma viagem por ele mesmo, meio século de vida. Fez 50 anos e esse aniversári­o teve um papel na sua escrita. É uma coisa estranha porque ainda não dei por ter vivido 50 anos. Fiz dois livros, [Rua Antes do Céu e] Polaroids de Distintos Naufrágios. Pelos meus anos, eu oferecia poemas que têm que ver com esse sujeito que supostamen­te serei eu. Depois isso passou a projeto de um livro com 50 poemas, para celebrar os 50 anos. No início não pensei em reunilos, até porque os meus livros são sempre projetos orgânicos, muito pensados, e começam por um título. Tem aí um caderno azul e uma caneta. Escreve poesia nesse caderno? Escrevo em todos os cadernos, em tudo o que estiver à mão. Como sou pouco dado às tecnologia­s, uso ainda métodos um bocadinho rupestres ou arcaicos. Acho que o meu cérebro está ligado a uma certa manualidad­e. Até para escrever um e-mail mais longo ou formal tenho de usar a caneta e o papel. Faço vários rascunhos. Na poesia os rascunhos são imensos. Essa forma de escrever, essa artesania, essa manualidad­e, é a forma como a poesia surge e é trabalhada por mim. Como surgem os poemas? Os meus livros não são coletâneas mas livros orgânicos. Parece que é um bocadinho mais difícil escrever um livro sobre um tema que depois vai tendo variações, mas torna o trabalho criativo – pelo menos no meu caso – mais facilitado, porque a cada manhã, tarde, ou noite, quando quero escrever um poema não vou à procura de um assunto, sei sobre o que vou escrever. Os meus livros são sempre um tema e variações, ou então são livros compostos por ciclos muito longos. Este título, Rua Antes do Céu, como apareceu? Este é um dos dois livros que têm que ver com esse percurso biográfico ou autobiográ­fico e aparece como uma segunda face. São títulos muito decetivos, sombrios, mas os livros são alegres, com uma certa melancolia porque aos 50 anos damo-nos conta de que somos mortais, o tempo que vivemos é mais do que aquele que nos falta viver, sem que isso seja uma fonte de angústia. Quem estuda filosofia tem uma certa paz a encarar as coisas do mundo. Na sua poesia sente-se uma pessoa que tem que ver com a filosofia. Como acha que se articulam? A poesia e a filosofia são quase para mim uma única coisa, são modos de acesso ao mundo sem que na poesia haja uma excessiva concetuali­zação, para que a arte não morra sob a armadura que a filosofia às vezes impõe. Comecei pela literatura, o que eu queria ser era escritor, mas senti a necessidad­e de tornar as coisas um pouco mais claras para mim, para ter mais consciênci­a dos processos do ato da criação. Mas é diferente a poesia que escreve agora e a que escrevia antes? A exigência é a mesma. Acho que os grandes livros são os primeiros livros. As pessoas acham que os grandes livros são quando o autor já fez um certo percurso e eu não sinto isso. Os primeiros livros têm uma força, uma vitalidade, uma inocência e uma frescura... O que se ganha em termos de armadura e de técnica não sei se chega para compensar a vitalidade das primeira obras. Cabo Verde é uma África diferente da África continenta­l? Um cabo-verdiano tem tendência sempre a pensar que Cabo Verde é uma África diferente. Todos os países são diferentes, também Portugal é diferente da Alemanha, da Finlândia. O cabo-verdiano é um híbrido mas tem tendência a valorizar apenas uma parte da sua hibridez, valoriza mais a herança europeia do que a parte africana, o que é compreensí­vel, dado que durante o período da colonizaçã­o foilhe incutida a ideia, sobretudo na elite pensante, de que era uma espécie de europeu de segunda. Na minha ilha, a presença africana é muito forte porque foi a primeira a ser povoada, sobretudo por escravos. Há sinais da presença da escravatur­a na maneira como se vive? Na minha ilha esteve o entreposto negreiro da CidadeVelh­a, para onde os escravos eram levados, latinizado­s porque eram considerad­os mais valiosos do que os escravos ditos boçais – que termo, meu Deus! Essa marca está presente na cultura da ilha de Santiago, também na ilha do Fogo, e sobretudo na língua cabo-verdiana. Lembro-me sempre daquele dito do Vergílio Ferreira – “Da minha língua vê-se o mar”. Da minha língua, que é a língua cabo-verdiana ou, se quisermos, o crioulo de Cabo Verde, veem-se séculos de escravidão e dor. Aquela língua é fruto de tudo o que se viveu ali naquele entreposto, naquela cidade, que é berço de todos os cabo-verdianos. Escreve em crioulo ou em português? Tenho mais facilidade em escrever em português porque o crioulo é uma língua semiágrafa. Durante muito tempo foi uma língua proibida, hoje há alguns avanços. Mas aprendi a escrever em português e não aprendi em crioulo. Passados 42 anos da independên­cia, ainda não conseguimo­s oficializa­r a língua cabo-verdiana nem ensiná-la nas escolas. Enquanto as crianças não dominarem formalment­e os dois sistemas, haverá sempre interferên­cias do português no crioulo de Cabo Verde, e do crioulo de CaboVerde no português. Conhece bem a literatura cabo-verdiana.Tem uma identidade própria? Cabo Verde tem uma literatura enraizada, própria, com mais de um século. O ensino foi introduzid­o em Cabo Verde muito cedo, através do seminário-liceu de São Nicolau, que produziu grandes intelectua­is como Baltazar Lopes da Silva e José Lopes. Gosta da música cabo-verdiana? Gosto imenso de todo o tipo de música, e obviamente da cabo-verdiana. Temos grandes cantores e compositor­es. A música cabo-verdiana já é um produto comunitári­o. A cada ano aparecem dez ou 20 nomes que se saírem para o estrangeir­o serão sempre grandes músicos. As ilhas têm essa magia, tanto podem dar literatura como podem dar música. A literatura exige o domínio do instrument­o que é a escrita, mas uma pessoa pode não conhecer uma única nota e cantar maravilhos­amente. Não quero que em Cabo Verde a música submirja outros aspetos da cultura, nomeadamen­te a literatura, porque Cabo Verde antes de ser um país da música foi um país da literatura. A ideia que temos de Cabo Verde foi a literatura que a criou. Que haja música por todos os lados todos os dias, e que haja literatura também, onde se possa refletir sobre aqueles aspetos mais importante­s e também divertidos desta coisa que é ser-se cabo-verdiano. Quando ouve uma morna, uma coladeira, o corpo começa a mexer? Não é para ser parcial, mas como sou da ilha de Santiago, o funaná é mais natural em mim. Claro que há as mornas, as letras das mornas, e pensamos em Eugénio Tavares, considerad­o o Camões de Cabo Verde. São poemas de uma intensidad­e tremenda. Se mais não houvesse para dizer o que é Cabo Verde, o que é o cabo-verdiano, haveria sempre as mornas, as coladeiras, os funanás. Vive em Portugal. Sente saudades de Cabo Verde? Estou em Portugal há 30 anos, vim para aqui para estudar mas sabia, no fundo, que vinha para ser escritor. Foi o meu caminho de Damasco. Não seria o escritor que sou se tivesse permanecid­o em Cabo Verde. Não sei se seria melhor ou pior, mas certamente diferente. Eu vou muito a Cabo Verde, não sinto a melancolia de viver no estrangeir­o. E todos os livros que escrevo – isto para mim já não é estranho, nos primeiros tempos foi – começo-os depois de uma viagem a Cabo Verde. Sempre que regresso há uma urgência, uma ideia na cabeça para escrever um livro.

“Escrevo em todos os cadernos, em tudo o que estiver à mão. Até para escrever um e-mail mais longo ou mais formal tenho de usar a caneta e o papel” “Na minha ilha esteve o entreposto negreiro da Cidade Velha, para onde os escravos eram levados, latinizado­s porque eram considerad­os mais valiosos” “Antes de ser um país da música, Cabo Verde foi um país da literatura. A ideia que temos de Cabo Verde foi a literatura que a criou”

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