Iraque está livre do ISIS, mas este ainda tem o califado virtual
Expulso pelo exército iraquiano apoiado pela coligação internacional, grupo poderá recorrer cada vez mais à propaganda online para incentivar seguidores a fazerem ataques
Em julho, soldados iraquianos celebraram a libertação de Mossul – decisiva para aderrota do Estado Islâmico
HELENA TECEDEIRO No auge da sua expansão, em janeiro de 2015 – seis meses depois de ter anunciado a criação do seu califado – o Estado Islâmico (ou ISIS) controlava quase 90 mil km2 de um território dividido entre a Síria e o Iraque. Depois de ontem o governo iraquiano ter anunciado que o país está “totalmente libertado” do grupo jihadista de Abu Bakr al-Baghdadi, o ISIS está reduzido a uma estreita faixa junto à fronteira da Síria e depende cada vez mais do califado virtual – capaz de inspirar atentados como os de Barcelona em agosto ou de Londres e Manchester em junho – para a sua sobrevivência.
“As nossas forças armadas heroicas garantiram a segurança ao longo de toda a fronteira entre Síria e Iraque. Derrotámos o Daesh [acrónimo árabe para o Estado Islâmico] graças à união e sacrifício da nossa nação. Viva o Iraque e o seu povo”, escreveu no Twitter o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi. A campanha para expulsar o ISIS do Iraque durou mais de três anos e envolveu 25 mil ataques aéreos da coligação internacional. Mas foi nos últimos meses que as coisas aceleraram, com o exército iraquiano a libertar primeiro Mossul, em julho, e Rawa no mês passado. Ao perder esta cidade, o ISIS ficou reduzido a poucas bolsas de resistência, que agora terão sido derrotadas.
Liderado por Baghdadi desde 2010, o ISIS deve muita da sua perícia militar a antigos oficiais de Saddam Hussein, que após a queda do ditador em 2003 e a ascensão da maioria xiita ao poder foram afastados das novas forças de segurança iraquianas. Depois do apogeu, nos últimos anos, o grupo tem vindo a perder terreno também na Síria, onde em outubro as Forças Democráticas Sírias (SDF, uma aliança de combatentes árabes e curdos), apoiadas pelos EUA, recuperaram Raqqa, a capital do califado. E em novembro foram as forças do presidente Bashar al-Assad, apoiadas pela Rússia, a recuperar Deir ez-Zor, o último reduto urbano do Estado Islâmico em território sírio.
Praticamente sem implantação no terreno, isso não significa que o ISIS tenha deixado de ser perigoso. Como escrevia a BBC no início de novembro, “a ideia de um ‘Estado’ do ISIS deixou de existir – hoje está reduzido a uma série de insurgências espalhadas”. Mas se “o território tem importância para o ISIS, não é tudo para um grupo que há muito provou ter uma forte presença online”. Afastado – para já – o sonho de um califado real, resta-lhe o que a BBC define como o califado virtual.
Vídeos, programas de rádio, revistas online, e muita, muita propaganda, com um verdadeiro exército de recrutadores a atraírem jovens para a mensagem do Estado Islâmico. O grupo tem oferecido aos seus seguidores manuais com instruções para atacar “os infiéis”. “Há armas e carros disponíveis e alvos prontos a serem atingidos. Até veneno está disponível, por isso envenenem a água e a comida de pelo menos um dos inimigos de Alá. Matem-nos e cuspam-lhes na cara e atropelem-nos com os vossos carros”, ordenava um vídeo divulgado em dezembro de 2014. Mas a sugestão de usar objetos do dia-a-dia em ataques tem-se repetido até hoje.
E a verdade é que se um ataque como o de Paris em novembro de 2015 – com vários alvos a serem atacados em simultâneo por vários terroristas – exigiu um certo grau de organização, nos ataques de Barcelona ou de Londres bastou um carro e o seu condutor para semear o pânico e causar mortes. Um modelo que os especialistas em terrorismo acreditam vir a repetir-se cada vez mais no futuro. Regresso dos jihadistas Praticamente sem território físico, uma das questões que se coloca é: para onde irão os combatentes do Estado Islâmico? Muitos dos jihadistas locais permanecerão na Síria e no Iraque, escondidos aos olhos de todos no meio das populações. Outros irão para zonas, na Líbia, no Iémen, no Sinai (no Egito), no Norte do Cáucaso ou no Sudeste Asiático, onde o ISIS criou “províncias”. Mas desde 2014, mais de 30 mil estrangeiros (seis mil europeus) juntaram-se ao grupo. Muitos foram voltando, mas outros ainda estavam na Síria e no Iraque. Um dos receios é que estes voltem aos seus países para fazer atentados, num esforço para vingar a derrota do califado.
Tal pode não ser a decisão de todos. Em outubro os serviços secretos internos britânicos, o MI5, admitia que alguns combatentes britânicos do ISIS poderão não voltar ao Reino Unido, sublinhando que dos 800 que se juntaram ao grupo, regressaram menos do que esperado. 130 foram mortos em combate. Os que decidirem ficar, deverão continuar com o ISIS, reassumindo a sua forma original: a de uma força rebelde e letal, que usava táticas que iam do ataque terrorista à guerrilha.
Alguns destes estrangeiros estão neste momento a ser julgados pelos tribunais iraquianos, enfrentando em alguns casos a pena de morte. Uma situação que deixa os países de origem perante um dilema moral: deixar a justiça local atuar ou pedir o seu regresso.