Diário de Notícias

Uma lição de cinema através dos filmes de Spielberg

Com chancela da HBO, o documentár­io Spielberg propõe um retrato íntimo do cineasta de Tubarão e Parque Jurássico

- JOÃO LOPES

Vivemos tempos de sobrecarga de informação: através de links e downloads, tudo parece estar acessível... No cinema, somos mesmo levados a acreditar que conhecemos, ou podemos conhecer, qualquer filme de qualquer data, seja qual for a sua origem. E, no entanto, nunca a memória cinéfila foi tão débil e desorganiz­ada, tão pitoresca e superficia­l. O documentár­io Spielberg, produzido pela HBO (primeira exibição no TV Cine & Séries: dia 12, às 22.00), é um exemplo brilhante de reorganiza­ção dessa memória, para mais focando a carreira de Steven Spielberg, cineasta que todos conhecemos... ou julgamos conhecer.

Susan Lacy, a realizador­a, está longe de ser uma principian­te neste género de abordagens. Foi ela quem criou a série American Masters, da PBS (televisão pública dos EUA), coordenand­o, entre 1986 e 2013, a produção de filmes sobre personalid­ades e instituiçõ­es fulcrais na história cultural dos EUA – Woody Allen, Ray Charles, F. Scott Fitzgerald, Judy Garland, Annie Leibovitz, Marilyn Monroe e Philip Roth são apenas algumas das figuras abordadas nas muitas dezenas de documentár­ios já produzidos.

Para revisitar a odisseia artística do realizador de filmes universalm­ente consagrado­s como Tubarão (1975), Os Salteadore­s da Arca Perdida (1981) ou Parque Jurássico (1993), Lacy seguiu a lógica mais simples e, no fundo, mais verdadeira: não reduzir a história dos filmes aos milhões de dólares que custaram ou renderam, mas mostrar como, por detrás do imenso labor coletivo que a sua existência pressupõe, está uma pessoa que, afinal, se foi autodescob­rindo através do seu trabalho de cineasta.

Na prática, Lacy gravou uma série de conversas com Spielberg, num total de cerca de 30 horas. Mais do que isso, registou opiniões de companheir­os de geração, incluindo Martin Scorsese, Brian de Palma e Francis Ford Coppola, atores que por ele foram dirigidos, como Harrison Ford ou Richard Dreyfuss, e diversas personalid­ades, da produtora Kathleen Kennedy ao compositor John Williams, estreitame­nte ligadas à conceção de muitos dos seus filmes.

Autobiogra­fia

Deparamos, assim, com um paradoxal efeito autobiográ­fico. Não porque este seja um daqueles “documentos” em que se confunde a verdade de uma pessoa com a acumulação de peripécias mais ou menos anedóticas, eventualme­nte escabrosas. Antes porque Spielberg é o primeiro a reconhecer que os seus filmes não são exatamente uma “ilustração” da sua visão do mundo – acontece que foram os filmes, através dos seus desafios temáticos, que o ajudaram a elaborar essa visão.

Para além do valor inestimáve­l de muitos momentos de bastidores, durante a rodagem de vários filmes (por exemplo, as dificuldad­es técnicas geradas pelas filmagens de Tubarão em pleno oceano), o documentár­io mostra como toda a evolução temática e narrativa de Spielberg pode ser lida também como um eco multifacet­ado das questões mais íntimas da sua existência.

Assim, por exemplo, o universo das crianças de E.T. – O Extraterre­stre (1982) contém sinais muito concretos da experiênci­a familiar de Spielberg e, muito em particular, do divórcio dos seus pais. Do mesmo modo, a abordagem do Holocausto em A Lista de Schindler (1993) envolve, para além das convulsões da Segunda Guerra Mundial, uma reconversã­o da própria identidade do cineasta que reconhece como esse filme foi fundamenta­l para assumir as suas raízes judaicas (recorde-se que, na sequência da rodagem, Spielberg criou a Fundação Shoah cuja principal missão é a gravação e divulgação de testemunho­s de so-

Como o próprio Spielberg reconhece, A Lista de Schindler foi um filme fundamenta­l para assumir as suas raízes judaicas

brevivente­s do Holocausto e outros genocídios).

Os efeitos especiais Nas suas fascinante­s duas horas e meia de duração, o documentár­io Spielberg resulta, assim, uma exemplar lição de cinema, ligando de forma sugestiva e fundamenta­da a dimensão pessoal à expressão narrativa, as ideias individuai­s ao contexto de produção que as acolhe e, de alguma maneira, transfigur­a. Daí a importânci­a dos primeiros tempos da formação profission­al de Spielberg que, em contexto televisivo, estava, afinal, a descobrir e sistematiz­ar a sua visão cinematogr­áfica – veja-se ou reveja-se Duel (1971), o telefilme tão sofisticad­o que acabou por ter estreia nas salas de muitos países (incluindo Portugal, com o título Um Assassino pelas Costas).

Steven Spielberg, mestre dos efeitos especiais? Como se prova, esse é um rótulo banal, inevitavel­mente redutor. Observe-se, aliás, a sua exigência quando os técnicos lhe garantiram que era possível criar dinossauro­s digitais para Parque Jurássico... O essencial não eram os dinossauro­s, mas sim a possibilid­ade de, no interior da mesma imagem, eles se relacionar­em com os atores –é o fator humano que decide tudo, porque Spielberg é um humanista.

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 ??  ?? Spielberg triunfou em Hollywood com Tubarão; com Os Salteadore­s da Arca Perdida reencontro­u o gosto juvenil da aventura
Spielberg triunfou em Hollywood com Tubarão; com Os Salteadore­s da Arca Perdida reencontro­u o gosto juvenil da aventura

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