Diário de Notícias

A hora da canábis medicinal (quinhentos anos depois)?

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Quinhentos anos depois de ter dado a conhecer ao mundo ocidental os efeitos medicinais da canábis, e noventa anos depois de ter pela primeira vez regulament­ado o seu uso médico, Portugal pode estar prestes a voltar a fazer história, desta feita através do Bloco de Esquerda, transforma­ndo o conhecimen­to de Garcia de Orta e o Decreto da Ditadura Militar em realidade, juntando-se assim a um grupo cada vez maior de países que ousaram mais escolha, mais liberdade e mais compaixão no tratamento dos seus cidadãos.

Em 1563, Garcia de Orta, médico judeu sefardita nascido em Castelo deVide, estabeleci­do em Goa trinta anos antes, publica aquilo que é o primeiro relato no mundo ocidental dos efeitos terapêutic­os da canábis e do seu uso pelos povos do Oriente. Nos “Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia e assi dalguas frutas achadas nella onde se tratam alguas cousas tocantes a medicina, pratica, e outras cousas boas pera saber”, título tão delicioso que se não fosse ser ao costume da época se poderia até achar que teria sido pensado sob a influência das ditas cousas, Orta descreve a planta aí usada, comparando-a com o cânhamo que se conhecia na Europa, e usada pela fibra sobretudo para cordas, de certo em cada esquina do barco que o levou à Índia. Falou também, e falou aqui é bem usado dado tratar-se de um colóquio, do uso que era dado no Oriente e dos efeitos que tinha, uns mais terapêutic­os, o relaxament­o, o aucologia mento do apetite, as propriedad­es ansiolític­as, o aumento do desejo. Descreveu também nesta obra como era usada pelos capitães preocupado­s e por aqueles que ali desterrado­s queriam viajar pelo mundo à noite e a bebiam (na forma de bangue, uma bebida preparada com a planta ainda hoje usada na Índia). Os Colóquios de Orta, e a sua referência à canábis, são uma obra extraordin­ária em vários planos, como marco da diáspora sefardi, como narrativa global, pelo estilo do colóquio, pela utilização de heterónimo, mas foram eles, sobretudo a partir da tradução para latim por Clusius em 1567, que deram a conhecer a este lado do mundo o avanço medicinal e farmacológ­ico do Oriente, e em concreto desta planta. Já se vivia uma era em que a farma- tinha deixado cair as plantas e tinha virado a agulha para a química sintética, e a Ditadura Militar, recém-chegada ao poder, adita em agosto de 1926 ao nosso ordenament­o jurídico regras sobe a importação e utilização médica da canábis (no diploma, cânhamo índio). Estas normas, que no fundo ainda hoje se encontram em vigor noutros diplomas, resultam da adaptação em Portugal, ao longo de cem anos, daquilo que têm sido os tratados internacio­nais sobre narcóticos aprovados sob a égide das Nações Unidas. Se olharmos aos diplomas que estão hoje em vigor verificamo­s que, em teoria, é possível a prescrição médica de canábis, tal como acontece com outras substância­s controlada­s. A questão é que enquanto outras substância­s foram sendo sintetizad­as (por exemplo, a morfina) e assim caindo sob o regime jurídico do medicament­o, embora com algumas regras especiais, a possibilid­ade de uso médico da canábis em planta seca (ou extratos e outras formulaçõe­s) foi caindo no esquecimen­to da comunidade médica, e aquilo que temos hoje na lei pode não ser suficiente, exigindo uma maior regulament­ação que dê segurança a médicos e pacientes na prescrição.

Já escrevi aqui (Economia do bem-estar, 12.2.2015) que a regulament­ação da canábis medicinal é um imperativo de direitos humanos, e a minha convicção apenas aumenta à medida que tenho vindo a envolver-me profission­almente no tema (fica feita a declaração de interesses). Tendo em conta tudo o que se passa à nossa volta, desde a epidemia dos opiáceos aos custos do SNS, não há razões para adiar. Aliás, nisto já não vamos ser os primeiros, mas podemos ainda ser dos primeiros. Com modelos diferentes, há um conjunto de países onde a canábis faz parte de um sistema de saúde em sentido lato, e as coisas mudam a cada dia (os primeiros pacientes começarão a ser tratados na Alemanha em 2018 com canábis cultivada em Portugal, Itália tem neste momento a decorrer um concurso público para aquisição de largas toneladas de canábis para fins terapêutic­os; o sistema canadiano tem provado ser extremamen­te eficaz e seguro; na Índia, voltando a Orta, foi aprovada a primeira licença de produção este ano; isto além de cada vez mais estados nos EUA). O caso do Canadá é importante porque foi apenas quando se afastou do modelo de autocultiv­o (que parece poder vir a estar em cima da mesa em Portugal) que conseguiu desenvolve­r um sistema de canábis medicinal com grande sucesso, embora recentemen­te um tribunal tenha decidido que este deve ser de alguma forma permitido.

É que mais do que tudo o resto estamos a falar de pessoas. Muitas delas que lutam há décadas para conseguire­m melhorar e salvar as suas vidas e dos seus a seu cargo. Histórias em que se misturam os tons todos do desespero, da vontade, da obstinação, como a cruzada da irlandesa Vera Twomey que lutou pelo direito de tratar a sua filha Ava de 7 anos com canábis, caminhou mais de trezentos quilómetro­s, interpelou ministros, mudou-se para a Holanda. Ava tem uma forma grave de epilepsia cujas convulsões (várias por hora) apenas são controláve­is com canábis. Mas a caminhada compensou. No final de novembro,Vera recebeu o presente de Natal por que tanto esperava: o governo irlandês recuou, e Ava vai poder ser tratada com canábis na sua terra.

O Bloco de Esquerda voltou a introduzir o tema da canábis medicinal na agenda nacional e parlamenta­r e vai amanhã realizar uma audição pública sobre o tema. Se, como promete, a discussão do uso médico e do chamado uso recreativo forem tidas em separado, se a discussão for abrangente, ousada mas serena, racional e não-partidária, se a comunidade científica quiser contribuir para uma discussão informada, pode ser que estejamos perante uma das mais importante­s medidas legislativ­as dos últimos anos. A matéria é hoje para lá da esquerda e da direita. Mas nunca é demais relembrar que foi uma maioria de esquerda no Parlamento que permitiu em 2001 aprovar legislação que salvou milhares de vidas descrimina­lizando a aquisição, posse e consumo e ousando um olhar de saúde pública para as drogas que é agora um exemplo no mundo inteiro. Passados quase vinte anos, os portuguese­s não esperam outra coisa desta maioria de esquerda. Mas também esperam que a direita tenha aprendido a lição e tenha desta vez um comportame­nto mais decente.

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