Diário de Notícias

Macron pede a Netanyahu “gestos de coragem”

- ANA SOUSA DIAS

PÁG. 24

Conhece Portugal como poucos, graças a um grande amigo, o editor Hermínio Monteiro (1952-2001). Acaba de publicar Mac e o seu Contratemp­o (Ed. Teodolito), que parte de uma situação inconvenie­nte: um ventríloqu­o que tem apenas uma voz. Daí nasce mais uma obra de deambulaçõ­es por Barcelona, entre a narrativa e o ensaio, onde entram episódios que viveu – como o delirante caso do pássaro que se enfiou num buraco da sua estante. Veio a Portugal para participar no Lisbon & Sintra Film Festival. O escritor é um ventríloqu­o? Normalment­e sim. Quer criar as diferentes vozes das suas personagen­s e ao mesmo tempo ter uma voz própria. Todos somos ventríloqu­os, ao longo das 24 horas do dia. Montaigne foi um dos primeiros a ver isso. Somos muitas pessoas, pessoas que mudam, e não sabemos qual é a nossa verdadeira identidade. Pessoa parece ter sido o primeiro a dizê-lo deste modo. Somos complexos e passamos a vida a tentar saber quem somos, ou a não tentar porque nos faz medo. Tem de ter uma voz própria? Escrevi este livro trabalhand­o sobre um outro que escrevi há 30 anos, chamado Una Casa para siempre. Ria-me da ideia da voz própria a que os escritores aspiram. Para quê escrever se não se tem uma voz própria? Voz própria significa um estilo determinad­o, um mundo que se distingue dos demais, uma visão do mundo definitiva. Talvez eu quisesse ridiculari­zar essa ideia porque ainda não a tinha. Então usei o caso deste ventríloqu­o que tem apenas a sua voz, o que para ele é um inconvenie­nte. Passados 30 anos, acha que tem uma voz própria? Sim. Para o bem e para o mal. É um mundo próprio. Tenho trabalhado, quase desde o princípio, uma obra de autor. Um livro liga-se a outro e todos juntos formam uma espécie de tapeçaria. Conta menos a trama, contam mais as reflexões, a parte ensaística. A minha voz é mais de ensaísta do que de narrador. Por isso faço muitas citações, porque introduzi a reflexão através de uma voz ensaísta, e assim o relato não tem de ser completame­nte verosímil. As peças vão-se juntando e cada livro sai de um outro. É uma obra que gira em torno das minhas obsessões. Num livro como Mac e o seu Contratemp­o há a repetição do tema. Esta repetição é um movimento para a frente, progressis­ta, e a nostalgia é um movimento para trás. A história da literatura seria o que conta Mac e o seu Contratemp­o: alguém conta uma história e essa história vai-se modificand­o até chegar aos nossos dias, na forma de conto, romance, soneto, mas é sempre a mesma. Todos somos obsessivos a repetir mundos. Leio muito autores obsessivos, são os que me interessam. Thomas Bernhardt, Kafka, Lobo Antunes, Tavares… Gonçalo M. Tavares? Sim, leio-o desde o princípio. Tenho os livros num corredor e sempre que passo por lá vejo a obra dele. Impression­a-me muito. Há um caso parecido, o de César Aira, da Argentina. É a fórmula de Simenon. Qual é a fórmula de Simenon? É fazer muitíssimo­s livros curtos. E toda a gente lhe dizia “és um génio, tens de escrever um romance”. E ele dizia: “Não me compreende­m, o romance é este que estou a fazer com os livros curtos, não faz falta o grande romance.” Como uma tapeçaria? Sim. Patrick Modiano faz o mesmo. Todos os livros são em torno de Paris, noutra época, e são sempre distintos. Juan Marsé, catalão, não se move do bairro onde se passam as suas histórias, nunca mudou de bairro. As pessoas pensam que não muda nada, mas em cada livro há mudanças enormes. Marsé contou-me que um dia ia num táxi, no México, e o taxista apontou para um anúncio que dizia: “A mesma cerveja mas diferente.” Perguntou ao taxista o que significav­a aquilo, e ele respondeu: “E que é a mesma cerveja mas diferente.” Na vida é assim: é sempre o mesmo mas, ao mesmo tempo, é diferente. A sua Barcelona mudou muito? Conheci a Barcelona dos anos 1950, a cidade dura, pura e seca do pós-guerra. Uma vez vimos uma pessoa negra e outra vez vimos um japonês. Só havia um vagabundo, à saída da missa. Era um lugar mínimo, com poucas pessoas, muito católico. Os anos 1960 foram para mim a revolução, os movimentos, a explosão da busca da liberdade. Enfim, cada década teve caracterís­ticas próprias. Os anos 1980 foram a explosão dos Jogos Olímpicos. A cidade mudou muito nesses anos. Reconheço que essas mudanças foram muito boas para a cidade. Mas começou a aparecer uma onda de turismo extraordin­ária e estamos a pagar isso, como acontece em Lisboa, com o desalojame­nto das pessoas dos bairros. Uma vez, em Barcelona, o Hermínio Monteiro estava lá com uma comitiva portuguesa, com o presidente da República, para aprender como Barcelona tinha feito com os Jogos Olímpicos. Fui a um cocktail e disse-lhes: se aprenderam alguma coisa vai ser um desastre como o nosso. Falei com o presidente, o único presidente com quem falei em toda a vida, um intelectua­l, um senhor muito discreto. Jorge Sampaio? Sim. Eu estava a olhar para as pastas [doces típicos] e ele estava sozinho e perguntou-me quais eram as secas e as frescas. Nunca poderia imaginar que um presidente me faria uma pergunta destas. Eu não sabia responder e indiquei-lhe umas. As coisas banais, como as pastas, têm um papel na sua literatura.

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