Diário de Notícias

Não é só a Líbia, ainda há 40 milhões de escravos no mundo

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Tudo é digno de ser narrado, tudo o que é autêntico é narrável. Mesmo quando se diz que não acontece nada, há coisas que acontecem, continuame­nte, se uma pessoa quiser observar. Quando estou a escrever, saio à rua talvez uma vez a cada três dias e há tantas coisas que acontecem em cinco minutos que regresso imediatame­nte, horrorizad­o porque saí só cinco minutos e que barbaridad­e! Mac e o seu Contratemp­o apresenta um bairro que faz parte da minha imaginação mas que é real, que com a crise foi invadido por uma série de personagen­s como os sem-abrigo. Alguns falam muito comigo e parecem saídos dos meus livros, sinceramen­te. E está atento ao que está à sua volta? Se procuro situações estranhas, não acontecem, mas se não as procuro acontecem muito. Dou-lhes muita importânci­a, senão não as contaria. O Mario Levrero [1940-2004], um escritor uruguaio, diz num livro que numa época escrevia contos e não os publicava porque lhe parecia que tinham sido escritos por outro. Pensava que tinha copiado sem saber. Então escreveu um conto em que sai à rua e tudo está organizado, como num cenário, é tudo uma construção fictícia montada para ele. Acontece-me o mesmo. Cada um de nós pode escrever o conto que quiser mas a sensação é a mesma, a sensação de que algumas coisas estão preparadas por alguém que dirige a obra e tu andas pelo bairro sabendo que te vão aparecer os personagen­s mais insólitos. Por exemplo, há um episódio em Mac, quando um pássaro entra na minha casa... O episódio é real? Totalmente real. Entrou, caiu num buraco da estante e foi parar ao chão, lá no fundo. Parece uma história de Borges, um pássaro que vai morrer a uma biblioteca. Enquanto o pássaro estava no buraco – esteve lá um dia inteiro –, eu escrevia. Eu estava entre a estante e a janela, e ele comunicava com os pássaros lá fora, e eu a escrever no meio. Acabei por ficar com carinho por ele, notei a sua ausência. A realidade é muito criativa? Sim, e a irrealidad­e não. Tem um tesouro enorme de citações. Há amigos meus que acham que tenho um dicionário de citações, mas não. Estou a escrever sobre um personagem que tem um arquivo de citações. É um subordinad­o do autor literário, trabalha para um autor e está desvaloriz­ado porque tem um salário baixo, porque é um intertextu­al. É um emprego não reconhecid­o, não há sindicato de distribuid­ores de citações. Tem um arquivo pessoal, mental? Há muitas frases que, como toda a gente, sublinho e depois copio-as para um documento Word, um cemitério de frases porque não as utilizo. Uma vez publiquei na Granta essas frases, um texto que se chama Lo Descartado. Portugal está muito presente na sua obra.Vem cá muitas vezes? Houve uma época em que vim muito, por razões editoriais e pela minha amizade com o Hermínio Monteiro, um apaixonado por Portugal. Um dia fomos a Amarante, visitar a casa de Pascoaes. No livro em que estou a trabalhar falo disso. Há no jardim uma espécie de cabine telefónica onde Pascoaes se metia nas noites de tempestade para escrever poemas trágicos. Isso ficou-me gravado para sempre, e situei aí uma ação deste livro. Utilizo-a para dizer que se perdeu o sentido da tragédia, já não se escreve poemas trágicos no meio da tempestade. Antes, a relação do homem com Deus era muito atormentad­a, mas era muito densa e trágica. Isso foi-se banalizand­o. Tal como a autoridade dos pais tem que ver com a ausência de Deus. Um filho tem de odiar o pai para que, depois de se separarem, esse ódio acabe e continuem a vida. Escreve todos os dias? Se não escrevo, tenho um problema de vazio e de angústia. De alguma forma, dá sentido à minha vida. O amor e o trabalho são as duas coisas que aguentam todo o edifício vital. Não fazer nada, ou fazer apenas artigos e não escrever um livro, dá-me angústia ao fim de uns meses. Tenho de pegar noutro, nem que seja para eu saber que estou a fazê-lo. Mesmo que o livro depois não venha a sê-lo, preciso de saber que tenho um projeto. Porque se tens uma ideia pela frente, uma visão de futuro, é muito diferente de não teres. Não sei viver sem projetos, sem algo pela frente além do dia-a-dia. Poderia ter sido outra coisa na vida? Não se saberá nunca. Em criança não se vislumbrav­a nada, nem mesmo escrever. Não se pode dizer que a escrita é inata em mim. Creio que encontrei uma forma de poder ficar sozinho no verão. A minha família ia para a praia e para mim era muito pesado ir para a praia e ficar quatro horas a apanhar sol, e meter-me dentro de água e sair, entre a água e o sol. Então inventei que queria ler e tinha sempre um livro, mesmo que não lesse, mas isso permitia-me afastar-me da família. Ficava sozinho com as minhas coisas, a ler, a pensar, a escrever algo. Isto com 14 ou 16 anos. Então pensei que os escritores se afastam da família mundial, do mundo, para escrever precisamen­te sobre o mundo que deixaram. São horas de solidão. Creio que escrevemos para nos afastarmos do mundo e poder comentá-lo. Mas precisamos de conhecer o mundo para poder comentá-lo, e isso obriga-me a sair dos retiros para continuar ligado ao mundo real. É um trabalho estranho. Paul Auster disse-me que escrevo muito sobre escritores porque tenho compaixão por eles. Desde então tenho andado às voltas com esta ideia. Porque sei que ser escritor pode ser fascinante mas também inspira muita compaixão. É um trabalho muito solitário, muito difícil e daí que sinta curiosidad­e por saber como os outros ou as outras resolvem isso, como fazem. E então espio-os, sempre que sejam interessan­tes. Espia? Leio muito as entrevista­s de fundo onde se explica tudo. Interessa-me muito saber como é, quando corre bem e quando corre mal.

“Sampaio perguntou quais eram as pastas secas e as frescas. Um presidente a falar comigo sobre isso, não podia acreditar” “Parece uma história de Borges, um pássaro que vai morrer a uma biblioteca. O pássaro estava no buraco da estante e eu escrevia” “Não se pode dizer que a escrita é inata em mim. Foi a forma de ficar sozinho quando a família ia para a praia”

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