Ele, ela e o sentido de humor
Se pudéssemos tomar estes Diários como fonte histórica, ficaríamos a saber que foi Eva quem, de forma acidental, descobriu o fogo, que se interessou por ele apenas porque era belo, antes de ganhar consciência da respetiva utilidade na vida de todos os dias, todos os longos dias no Paraíso, gastos por ela em experiências e no glorioso ato de dar nome a tudo o que via e testava. Adão, esse não mostrou qualquer emoção diante das chamas e do fumo, diante do calor que o fogo proporcionava. Também ganharíamos consciência de que a primeira função útil do fogo foi proporcionar a Eva o prazer de comer maçãs assadas e de que a criatura escolhida como primeiro animal de estimação foi o brontossauro. Mas, porventura, mais importante e significativo do que isso, teríamos de reconhecer uma enorme desvantagem do masculino face ao feminino, muito mais apaixonado, muito mais curioso, muito mais lúcido do que a “contrapartida”.
Mark Twain – o homem que infelizmente só reconhecemos como o escritor que criou, juntou e autonomizou Tom Sawyer e Huckleberry Finn, ignorando os seus contos, mágicos como poucos – faz batota, evidentemente. Porque conta as histórias de Adão e Eva, bem como o percurso conjunto de ambos, à luz dos nossos dias: em matéria de tempo decorrido, o facto de estes escritos datarem de 1904 e 1906, face ao princípio da existência humana, faz deles algo de contemporâneo. Twain oferece aos seus protagonistas palavras e noções como “dinamismo”, “estatística”, “cavalheirismo” e por aí fora. Ou seja, acaba por dotar estes estreantes na grande aventura da existência de uma consciência global que, certamente, eles não teriam sem essa generosidade interesseira do autor. E é essa “finta”, é esse desvio que permite ao leitor ir seguindo as peripécias dividido entre dois mundos: o da revelação de todas as coisas aos olhos de Adão e Eva, mais os dela do que os dele, e o de uma abordagem que legitima quem lê a não precisar de procurar um nível diferente de consciência.
O resto vai nascendo da inspiração – romântica, também – do escritor (1835-1910), que faz questão de cavar, a cada passo, uma trincheira funda, mas nunca inultrapassável, entre os seus dois eleitos. A Adão cabem as tarefas mais básicas ou mais rotineiras que vão garantindo a sobrevivência do casal, que demora anos a perceber que o é. E essa é uma contribuição essencial, sem a qual não haveria continuidade na espécie, mesmo depois de aparecerem os primeiros filhos (Caim e Abel, claro) que tanto intrigam o pai. Eva encarrega-se de outro domínio fundamental para que a vida cresça e faça mais sentido: tudo o que é afetivo, tudo o que é desafio, tudo o que não se contente com o que existe, antes procure – de forma atabalhoada ou pueril – aquilo que pode existir. Contas feitas, Twain é parcial e definitivo, reservando a Eva e à sua maneira de encarar o que a rodeia o papel decisivo de “motor de busca”. Cite-se esta nossa mãe, primitiva mas inspirada: “Tenho de me contentar com o simples facto de o saber, porque não tenho forma de o provar – pelo menos até agora ainda não tive. Mas hei-de arranjar uma maneira… e nessa altura aquela excitação vai desaparecer. São coisas destas que me deixam triste; porque, aos poucos, quando tiver descoberto tudo, nada mais irá entusiasmar-me, e eu adoro tanto estar entusiasmada!”
Os Diários de Adão e Eva é, assim, um livro muito mais subversivo do que parece, que faz uso primoroso do sentido de humor de um escritor, mas que também funciona como alerta para aquilo que tomamos como adquirido, sem o ser. Por outras palavras, as notícias da inocência – sem pecado original – destes diários são manifestamente exageradas.