Onde é que eu já vi este filme?
OLuís e a Alice eram o protótipo da família perfeita. Ele era construtor civil. Ela, uma administrativa que ganhava pouco mais do que o salário mínimo nacional. A explosão do imobiliário durante a década de 90 deu-lhes o nível de vida que sempre ambicionaram. Os apartamentos que ele construía vendiam-se quase sozinhos. Os bancos emprestavam dinheiro para tudo. Para comprar a casa, a mobília e, se fosse preciso, ainda emprestavam para ir de férias. O Luís e a Alice viviam bem, muito bem mesmo. Trocavam de carro com regularidade, faziam férias mais ou menos faustosas para uma família de classe média, jantavam e almoçavam fora várias vezes por semana.
Quando o ciclo económico começou a inverter-se, durante a primeira década de 2000, o Luís e a Alice entraram em negação. Os apartamentos que se vendiam como pãezinhos quentes começaram a ficar vazios durante vários meses e o dinheiro, esse, já não circulava na conta bancária com tanta fluidez. Mas o Luís e a Alice recusaram-se a descer o nível de vida. Os carros continuaram a ser substituídos por modelos mais recentes e as férias passaram a ser pagas com empréstimos bancários. Era só um período mais difícil, pensaram. Isto passa.
Para quem ainda lê notícias, é impossível não ter a sensação de que estamos a ver um filme repetido. O crédito ao consumo está, desde 2015, a crescer a ritmo considerável. Só nos primeiros nove meses deste ano, os bancos emprestaram quase 18 milhões de euros às famílias para bens de consumo, um crescimento de 12% face ao mesmo período do ano passado. Nada há a temer, diz o Banco de Portugal, que garante que ainda estamos longe dos níveis pré-troika. Ficamos todos muito mais descansados.
Também no imobiliário, ainda são poucos os que arriscam falar numa nova bolha. As casas custam uma verdadeira barbaridade, mas isso é culpa dos turistas. E, no fundo, até é bom. Quem não gosta de ter turistas no seu país a gastar dinheiro? Se os jovens não conseguem arrendar um T1 básico em Lisboa por menos de 1300 euros, é o mercado a funcionar.
Depois do tsunami financeiro dos últimos anos, os bancos que sobreviveram reergueram-se e voltaram ao business as usual. Compre, vá!, invista em si! Troque esse seu velho eletrodoméstico que ainda funciona por este supermoderno! As campanhas publicitárias voltaram à agressividade de antigamente e os produtos vendidos pelos bancos são ainda mais complexos do que no passado. É como se nada se tivesse passado. Como se a crise financeira não tivesse deixado milhões na miséria, sem casa e, nalguns casos, a morrer à fome. Mas está tudo bem. “Ainda estamos longe dos níveis pré-troika.”
O governo não tem nada para dizer sobre isto. Se, em cima de uma política de reposição de rendimentos que aumentou o consumo interno, as pessoas ainda vão pedir emprestado ao banco para consumirem mais, isso só pode ser uma boa notícia. São mais impostos e, já agora, mais votos que entram. A taxa de poupança caiu, mas… para quê preocuparmo-nos? Pior, o governo, este como todos os anteriores em circunstância idênticas, alimenta esta política de curto prazo, que rende no curto prazo, mas tem uma fatura pesada no médio/longo prazo. Se for para culpar alguém, há sempre os mercados.
Os mercados. Essa entidade parda, que os políticos respeitam quando estão no poder e em quem cospem quando o perdem, está de volta. Nas últimas semanas, Carlos Carvalhas e Francisco Louçã vieram alertar para a chegada de uma nova crise, de um novo colapso financeiro. Louçã fala mesmo num poder-sombra que está fora de controlo e que volta a ameaçar as economias mundiais. Na verdade, essa ameaça nunca desapareceu. Há, de facto, um poder-sombra que manda mais do que qualquer governo, do que qualquer presidente. O poder-sombra dos mercados que financiam os países. Que nos permite ter uma reforma, saúde, educação, obras públicas. Há um poder-sombra que o poder político não só nunca conseguiu controlar, mas de que depende, como um toxicodependente depende da heroína.
A dependência da dívida, que afeta famílias e empresas, começa, precisamente, no Estado. Basta lembrarmo-nos da principal prioridade de países como Portugal, que entraram em bancarrota: regressar aos mercados. Conseguir dinheiro emprestado. Mais uma dose. Só mais uma dose. Em momento algum, a prioridade de Portugal – e da Europa, diga-se – foi aproveitar a crise para lançar as bases de uma economia sustentável, que dependa cada vez menos do endividamento e cada vez mais daquilo que produz.
Quando, em vez de um ou dois apartamentos vazios, foram prédios inteiros que ficaram por vender, o Luís e a Alice passaram mal. Os bancos não se limitaram a fechar a torneira do crédito, puxaram a corda que lhes tinham metido ao pescoço e desfizeram a vida daquela família. O Luís e a Alice venderam a mobília, divorciaram-se para não perderem a casa e recorreram à ajuda da família e dos amigos para não ficarem na miséria. Não, ainda não estamos nos níveis pré-troika. Mas lá que eu já vi este filme, isso vi.
Para quem ainda lê notícias, é impossível não ter a sensação de que estamos a ver um filme repetido. O crédito ao consumo está, desde 2015, a crescer a ritmo considerável. Só nos primeiros nove meses deste ano, os bancos emprestaram quase 18 milhões de euros às famílias para bens de consumo, um crescimento de 12% face ao mesmo período do ano passado