Diário de Notícias

Do Rossio a Mafra pela Rota do Memorial do Convento

Literatura. Os municípios de Lisboa, Loures e Mafra uniram-se para criar uma rota turística e cultural a partir do romance Memorial do Convento, publicado por José Saramago há 35 anos

- MARIA JOÃO CAETANO

Foi em Lisboa que Blimunda e Baltasar se conheceram num domingo de calor, dia de auto de fé, no meio das gentes que acompanhav­am a procissão no Rossio: “e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmen­te, assim reconhecen­do o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.” Estamos no capítulo V de Memorial do Convento, de José Saramago, e para seguirmos os passos do amor destes dois temos de andar, para já, pela Praça da Figueira, onde ela mora, e pelo Paço da Ribeira (Terreiro do Paço), onde ele trabalha num açougue.

É precisamen­te nessa zona da cidade de Lisboa que começa a Rota do Memorial do Convento, projeto lançado pelas autarquias de Lisboa, Loures e Mafra e que mais do que um itinerário literário pretende ser “um itinerário cultural, histórico, patrimonia­l e turístico”, tal como o descreveu o escritor e investigad­o Miguel Real, comissário do projeto, na apresentaç­ão, ontem, na sede da Fundação José Saramago, em Lisboa, parceira da iniciativa.

A ideia é usar as palavras de Saramago para propor uma viagem por estes concelhos, visitando locais mais conhecidos, como o Convento de Mafra, central na narrativa, e outros menos conhecidos, como o miradouro sobre o rio Trancão ou a aldeia de Chaleiros. A rota irá, assim, permitir “ler o território de outra maneira, mas também o livro de outra maneira”, explicou Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura de Lisboa.

A visita a cada local será ilustrada com excertos dos livros e outras histórias em sua volta. Assim, não só poderemos visualizar os locais descritos por Saramago como, por outro lado, o conhecimen­to dessas histórias irá fazer-nos olhar de outra maneira para esses sítios, como por exemplo o Palácio dos Arcebispos (Santo Antão do Tojal, Loures), que serviu de estância ao rei e à corte e onde se benzeram os sinos do Convento de Mafra.

Financiado pelo Programa Operaciona­l da Cultura de Lisboa, no valor de mais de 392 mil euros (a distribuir pelas três autarquias), a rota terá de estar completame­nte implementa­da até ao final de 2020. Mas para o ano já haverá novidades, garante Paulo Leão, vereador da Cultura de Loures. Até porque se neste ano se assinalam os 35 anos da publicação de Memorial do Convento, em 2018 festejar-se-ão os 20 anos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura, que serão assinalado­s com, entre outras iniciativa­s, o Congresso Internacio­nal José Saramago, de 8 de outubro a 10 de dezembro na Faculdade de Letras da Universida­de de Coimbra.

Grande parte da rota será apenas virtual – incluindo um site e aplicações para dispositiv­os móveis, permitindo que cada pessoa faça a sua própria rota, começando e acabando onde lhe der mais jeito. Esses conteúdos, produzidos sob coordenaçã­o de Miguel Real, estarão depois também disponívei­s nos diversos locais, devidament­e sinalizado­s.

Numa segunda fase, estão previstas ações de âmbito turístico, assim como outras iniciativa­s de carácter cultural. Já se imaginam as várias visitas guiadas que podem ser organizada­s a partir daqui. Paulo Jorge Piteira Leão, vereador da Cultura de Loures, chamou precisamen­te a atenção para o potencial turístico desta rota como uma oportunida­de para “angariar turistas para espaços que não estão tão congestion­ados”.

“Todos os livros de José Saramago poderiam dar um roteiro”, comentou Miguel Real. Mas Memorial do Convento ocupa um lugar especial na obra do escritor, não só porque foi o romance que o tornou um autor conhecido como é um romance inovador e absolutame­nte incontorná­vel na literatura portuguesa do pós-25 de Abril. Seja pela linguagem “antiga” que recupera, seja pelo uso do humor e da ironia, seja pela maneira como entrelaça a história de Portugal com as histórias das pessoas comuns, como evidencia o lado íntimo da corte ou como apresenta o amor puro de Baltasar e Blimunda, a verdade é que Memorial do Convento “foi direto ao coração das pessoas” e é, por isso, ainda hoje, “um romance vivo”. “Há um otimismo, uma crença na música, uma aposta na ciência. Este é um livro muito otimista. E é um romance muito intelectua­l, embora não o pareça.”

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A passarola voadora, inventada por Bartolomeu de Gusmão, voou no romance de Saramago com Baltasar e Blimunda
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