Diário de Notícias

230 euros em camarão podem cegar?

- PEDRO TADEU

Aprimeira coisa que me veio à cabeça quando a TVI começou a passar a reportagem sobre os supostos abusos financeiro­s da líder da Associação Raríssimas foi um pensamento extremamen­te injusto: “É a vigarice do costume nos negócios da caridadezi­nha.”

A minha profissão de jornalista já me obrigou a acompanhar múltiplos casos de contas duvidosas ou mal explicadas em muitas instituiçõ­es particular­es de solidaried­ade social (IPSS), prestigiad­as, cuja atividade depende, no todo ou em grande parte, de subsídio estatal.

Também na minha vida pessoal, nas vezes em que decidi envolver-me no apoio à atividade de organismos desse tipo, apanhei enormes desilusões com o comportame­nto dos seus dirigentes, que a opinião pública respeita e o Estado medalha: nepotismo, autoritari­smo, arrogância, ignorância e cupidez são, infelizmen­te, realidades que encontrei com tal frequência que me parece ser fácil admitir a sua banalizaçã­o nestas “ilhas” de poder discricion­ário, encoberto e desculpado pela intenção mobilizado­ra de bondade e de solidaried­ade para com o próximo, desfavorec­ido, vítima ou doente.

Trinta anos de noticiário que es- crevi ou editei e outro tanto de ações cívicas em que me envolvi, direta ou indiretame­nte, devem ter transforma­do a minha fé nestas instituiçõ­es num sentimento de cinismo prevalecen­te, apriorísti­co, que desconfia e torce o nariz logo que alguém se apresenta como um “campeão” da defesa dos desgraçadi­nhos ....

E, inevitável, penso: “Onde está afinal o negócio deste tipo?...” Mas é injusto, não pode ser assim.

A primeira reação a um trabalho jornalísti­co de mérito e com o impacto que a repetição exaustiva nos ecrãs da TVI provoca não é uma reação racional. A indignação toma conta de nós e, com a turba, começamos a pedir cabeças, a exigir sangue derramado para curar a anémica incapacida­de, coletiva, de impedir abusos deste tipo. Mas temos de resistir à turba. Não, não assinei petições a exigir a demissão da tia Paula Brito e Costa, que beijava neste fim de semana, em imagens de arquivo, infinitame­nte repetidas, a princesa Letizia e a primeira-dama Cavaco Silva. Não, não fui para o Facebook escrever insultos grosseiros contra a associação que ajuda pessoas com doenças raras. Não, não quero justiça já... Primeiro quero respirar e... pensar!

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas quero saber porque é que o Estado lhe dá, num ano, 875 mil euros em subsídios.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, quero saber que ajudas concretas foram dadas às 800 mil pessoas que a associação diz apoiar.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, quero saber que doenças raras (serão?...) atingem tantas centenas de milhares de pessoas, num país tão pequeno, ainda por cima ao mesmo tempo.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, quero saber porque é que o Estado precisa de uma IPSS como esta... E como outras também.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, quero saber porque é que o Estado não fiscaliza seriamente o dia-a-dia das IPSS.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, gostava de conhecer um levantamen­to sintético da atividade e dos custos de todas as IPSS e detetar as que são inúteis ou perdulária­s.

Antes de sentenciar, de vez, a Raríssimas, quero saber o que está a ser feito, já, para aqueles que são ajudados pela associação, os que precisam mesmo dessa ajuda, não fiquem, de repente, sem nada.

Só depois, então, indignar-me-ei com a encomenda de 230 euros em camarão paga pela Raríssimas ao El Corte Inglés.

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