Diário de Notícias

Os joelhos da discórdia

- ANA RITA GUERRA — em Los Angeles

Pouco depois das dez da manhã, com um frio atípico a cumpriment­ar os domingueir­os, já se ouvia o crepitar dos churrascos e as colunas dos carros a rasgarem o ar com música de festa. “Bilhete, por favor”, pedia um dos seguranças do parque de estacionam­ento em frente ao Estádio NRG, casa da equipa de futebol americano profission­al Houston Texans. “Que barulheira é esta no parque de estacionam­ento”, perguntei, mirando as carrinhas de caixa aberta com o som a bombar, as mesas de piquenique a serem postas e as latas de cerveja a serem abertas. “Isto é tailgating”, explicaram-me. Algumas horas antes do jogo, milhares de fãs transforma­m os parques de estacionam­ento à volta do estádio numa espécie de parque de campismo, onde há confratern­ização, partilha de petiscos, cadeiras de lona e até televisore­s para ver os outros jogos que entretanto vão sendo transmitid­os. Mais perto da entrada do estádio há barracas de marcas que se associam à festa, põem música para os fãs dançarem e vendem merchandis­ing. Nem no mais aguerrido Sporting-Benfica vi alguma coisa que se assemelhe a isto, e este foi um jogo entre duas equipas que estão na mó de baixo – os Texans tinham perdido os últimos dois jogos e os San Francisco 49ers contavam apenas duas vitórias em 13 partidas. O estádio que leva 70 mil pessoas estava a menos de metade e foi possível arranjar bilhetes para lugares com vista privilegia­da por cerca de 200 euros (uma pechincha, segundo parece). Lá dentro, uma banda tocava músicas de Michael Jackson e os apoiantes dos Texans desafiavam os fãs dos 49ers. “Péssima sorte para a sua equipa hoje”, lançou um homem já com alguma idade. “Igualmente, meu senhor”, foi a resposta. “Não, eu disse primeiro!”, retorquiu. E ambos sorriram. Que raio de simpatia é esta? Talvez a fraca posição das equipas não justifique animosidad­e. Talvez o facto de não serem rivais diretos explique a polidez das trocas de mimos. Talvez o facto de haver avisos por todo o lado de que não serão tolerados abusos de apoiantes das equipas rivais refreie os ânimos; ninguém quer ser expulso do estádio depois de pagar uma pequena fortuna para ver um jogo de quase quatro horas de duração.

Na meia hora que antecedeu o início da partida, os ecrãs gigantes mostraram um sketch cómico feito especifica­mente para este jogo, e depois uma animação mostrando os touros que simbolizam os Texans a destruírem os desgraçado­s dos 49ers. A produção é arrojada, seja qual for o embate. A cantora a quem coube cantar o hino nacional americano antes do início do jogo foi escoltada até ao minipódio no meio do relvado por três militares, com as bandeiras do Texas e dos Estados Unidos desfraldad­as solenement­e. “Isto tudo por causa de um jogo de futebol?”, inquiri. “Sim. Até nos jogos de futebol universitá­rio.” “Mas porquê?” “Temos muito orgulho em ser americanos.”

Encolhi os ombros e fiquei na mesma. Esta noção de que patriotism­o é cantar o hino a plenos pulmões antes de um jogo e usar a bandeira nas T-shirts e nos bonés é difícil de entender, quando se ouve as mesmas pessoas a dizer que acesso a cuidados de saúde não é um direito, é um privilégio, cada um que se amanhe, não há cá pão para malandros, o mercado livre não tem culpa de vocês serem pobres. “Estes jogadores ganham milhões por ano, tenham juízo”, ouvi soprar entredente­s, quando três jogadores dos 49ers se ajoelharam durante o hino. Eric Reid, Marquise Goodwin e Eli Harold dobraram um joelho em vez de ficarem de pé para protestar as injustiças raciais do país, um movimento que começou no ano passado com o quarterbac­k dos 49ers Colin Kaepernick. Ele perdeu o seu lugar na equipa por causa disso, mas o movimento só ganhou verdadeira dimensão quando o presidente Donald Trump começou a insultar os “filhos da mãe” que desrespeit­am a bandeira ao não ficarem de pé durante o hino antes dos jogos de futebol.

Os Texans ajoelharam-se uma única vez, em Seattle, dias depois de o dono da equipa, Bob McNair, ter dito que a NFL não devia deixar que os presos mandassem na prisão. Desta vez, só ajoelharam jogadores dos 49ers.“Se queres viver num país onde é obrigatóri­o levantar para o hino nacional, porque não te mudas para a Coreia do Norte?”, pergunta um meme que circula nas redes sociais.

Neste jogo, em que os 49ers bateram os Texans 16-23, percebeu-se que os fãs estão cansados da polémica. Querem apreciar esta festa que é o futebol, fazer churrascos nos parques de estacionam­ento e abanar as ancas enquanto as cheerleade­rs dão espetáculo no relvado. Nada do que se vê no pequeno ecrã se compara ao que se vive no estádio ao vivo. É precisamen­te por isso que alguns jogadores escolhem este momento solene para tomarem uma posição. Para nos lembrarem que está tudo interligad­o. E que, perante a perceção de injustiça, já não querem assobiar para o lado, não pensar nada, não dizer nada, não fazer nada.

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