Um novo demolidor global?
Em 1788, num dos seus artigos para o que me parece ser o mais importante livro de sempre sobre democracia, O Federalista, escreveu James Madison: “Se os homens fossem anjos não seria necessária a existência de governos. Se fossem anjos a governar os homens não seria necessária a existência de quaisquer controlos externos ou internos sobre os governos” (FP 51). O permanente problema da política reside no facto de não existirem anjos na sociedade, mas apenas seres humanos, com as suas profundas imperfeições, incluindo a mais obstinada tendência antropológica que consiste em abusar da confiança pública em favor do benefício próprio. A vantagem das democracias sobre os regimes despóticos é que o abuso político costuma ser travado em níveis graves mas não letais: corrupção e venalidade que acabam até, às vezes, por ser punidos pelo sistema de separação de poderes (a nós, portugueses, não é estranho este género de pulhice dos governantes). Contudo, a política, sempre presa vulnerável da ambição, abriga além desta variada gama de abusos menores a eventualidade muito rara daquilo que eu designo como “demolidores globais”. Para o seu aparecimento são necessários quatro requisitos fundamentais: a) ser líder de uma grande potência; b) ser dominado por um narcisismo patológico, que usa a ideologia de um modo apenas instrumental; c) ser indiferente a qualquer consideração ética ou humanitária na seleção de meios para atingir objetivos; d) não se importar de fazer pagar ao seu próprio povo um preço terrível para se manter numa posição de mando. No século passado tivemos três demolidores globais: Hitler, Estaline e Mao Zedong. A alguns outros candidatos faltava algum dos predicados. Ao imperador japonês Hirohito, apesar de ser um “deus vivo”, faltava-lhe o narcisismo patológico. Ao sanguinário Pol Pot carecia-lhe a escala que o pequeno Camboja não lhe poderia dar. De resto, os três demolidores globais referidos confirmam todos os critérios. Quem quiser perceber o comportamento de Hitler, Estaline e Mao Zedong, substituindo o primado do seu narcisismo homicida por considerações de tipo doutrinário, ainda não percebeu nada de uma parte decisiva da nossa história. Agora que Trump obteve as suas primeiras vitórias, consolidando o seu poder sobre um venal Congresso republicano, assumindo-se também como o chefe da plutocracia americana que a nova lei tributária torna ainda mais rica, é caso para perguntar se ainda estamos no tempo de condescender com as suas aparentes trapalhadas. Trump é o mais independente presidente dos EUA desde o dia em que George Washington foi obrigado a inaugurar o cargo. Foi eleito com forças e meios próprios. Não tem de pagar favores de campanha. Não serve nenhuma agenda política rígida. A única coisa que manda em Trump é a sua infinita autoidolatria (em 1994, quando entrei em Atlantic City, fiquei boquiaberto ao ver o seu culto da personalidade espalhado no nome de imensos hotéis e casinos...). A sua política doméstica, que cava trincheiras entre os norte-americanos e deixa 20 milhões de cidadãos pobres exangues à porta dos hospitais, é inteiramente coerente com a política externa que consiste em semear o caos no sistema internacional: destruir a cooperação climática, hostilizar o Irão, armar os sauditas até aos dentes, oferecer à direita israelita um pesadelo embrulhado em sonho, deixar em aberto uma guerra nuclear contra a Coreia do Norte. Quanto mais confusão, mais Trump se exime de um efetivo controlo constitucional. Uma parte do nosso futuro coletivo ficou refém de um homem sem medida.