Diário de Notícias

“Sou estupidame­nte perfecioni­sta, posso perder tempo com um pormenor que só eu oiço”

- ANA SOUSA DIAS

Continua a usar o cabelo comprido, como nos tempos mais roqueiros, e o cavaquinho continua a ser o instrument­o preferido – acha-lhe graça por lhe permitir fazer melodia e ritmo. Começou por tocar bandolim e guitarra elétrica, e tornou-se músico às escondidas do pai. Acaba de lançar o disco Praça do Comércio, um três em um: CD, LP e um livro com textos, pautas e partituras, com ilustraçõe­s de Carlos Zíngaro. A 19 de janeiro, vai abrir a temporada do Teatro Viriato, em Viseu, e no dia seguinte atuará em Espinho. O livro do disco Praça do Comércio é um tratado sobre o cavaquinho. Não é propriamen­te um tratado, são textos abertos. Destinam-se a quem queira saber mais sobre esses instrument­os. Foi a primeira vez que fiz um guia de acordes e partituras, para quem queira tocar as músicas. A música é um trabalho solitário? O processo de composição é totalmente solitário, mas a partir da orquestraç­ão já tens de ligar-te com outros músicos. Neste disco tenho convidados que são necessário­s, não é para ter convidados. A história é feita com sons, os sons são feitos pelas pessoas. Demoras muito a compor um tema? Saltam cá para fora numa relação muito direta com o instrument­o. Não tem tempo nem dominas, não é “agora vou para casa fazer uma música”. Podes agarrar-te a um instrument­o musical, estás para ali a tocar e não sai nada. Ligo a televisão e estou com um cavaquinho nas mãos, a brincar. Mas de vez em quando há uma sequência de notas que me chama a atenção e então pego nelas e desenvolvo-as. E aí vai nascer, provavelme­nte, um tema. Tudo isto acontece por acaso. No caso deste disco foi assim? Sim. Há sempre uma altura quando lanças o desafio a ti próprio: vou fazer um disco. A partir daí vais mais vezes criar situações para tocar. Ainda assim, não sabes quanto tempo demora. Pelo facto de eu ter um estúdio em casa também levo mais tempo. No analógico tinha tudo preparado para fazer um disco, os arranjos e tudo, porque só tinha aqueles oito ou 15 dias para gravar. Agora com home studio é terrível. Demoras dez vezes mais porque, se fores perfecioni­sta, aquilo nunca está bom. Estás sempre a alterar. És perfecioni­sta? Sou estupidame­nte perfecioni­sta. Às vezes perco tempo com um pormenor que só eu ouço, os outros nem sequer se dão conta. E o técnico de estúdio, Quico Serrano, um músico fantástico, é como eu. Desespero quando assisto às misturas feitas por ele, porque é capaz de estar horas a trabalhar numas frequência­s não sei quê que só ele ouve. Nunca acontece ir buscar outra vez a primeira versão? Nunca. Há um tema deste disco que estava para ir para o lixo, o Galope no Deserto. Aquilo irritou-me. Depois aconteceu uma coisa qualquer na música que me agradou e recuperei-a. Componho à noite, sempre. No outro dia, fresquinho, oiço. Muitas vezes vai tudo para o lixo, outras vezes não. Sou capaz de estar a tocar uma hora e ir buscar lá uns segundos porque acho que são curiosos. Deito tudo fora e começo a trabalhar a partir desses segundos. Como percebeste que tinhas esse dom para a música? Receio que a minha resposta aparente ser pedante, mas lembro-me perfeitame­nte, tinha 6 anos e meio. O meu pai tocava bandolim e obriguei-o a ensinar-me. Estava na casa de um amigo, com o meu bandolim, e pela primeira vez consegui tocar uma música que tinha ouvido na rádio, o Jingle Bells. Foi como se naquele momento eu soubesse. Nunca mais tive dúvidas. O meu pai nunca quis que eu fosse músico, fui sempre às escondidas. Aos 11 anos era o puto jeitoso, os músicos das bandas de rock, ou melhor, de pré-rock, iam buscar-me. Tocavas o quê? Guitarra elétrica, uma guitarra que o meu pai me comprou quando eu tinha 10 anos. Nunca percebi aquela prenda do meu pai. Ele só me reconheceu como músico quando fiz um disco chamado Cavaquinho em 1981. O boom foi tão grande e os amigos chegavam ao pé dele todos os dias com recortes de jornais e coisas assim, e o meu pai lá se rendeu. Um dia estava a assinar autógrafos e apareceu o meu pai. Já eu tinha 29 anos. Dos dez aos 20 acabei por ser músico de rock. Saí de casa e aos 17 anos fiz parte de uma banda, Petrus Castrus. Gravámos no Honky Château, um estúdio importante onde gravavam os Pink Floyd e o Elton John. O Zé Mário Branco vivia em França, tinha o contacto com o estúdio. Vários cantautore­s iam lá gravar. Depois do 25 de Abril, fizemos uma peça musical, chamada Liberdade, Liberdade, no Teatro Villaret. A música era do Fausto e do Zé Mário Branco e o Zé Mário convidou-me para formar e dirigir o grupo musical. Começaram todos a convidar-me para trabalhar nos seus álbuns – Fausto, Vitorino, Adriano, até chegar ao Zeca. Começou uma nova fase. O teu contacto com o Zeca é depois do 25 de Abril? Exato. Em 1976 tive a maluqueira de fazer uma espécie de opereta rock que se chamava Fernandinh­o Vai ao Vinho, era a história da minha vida. Fui a casa do Zeca, a Setúbal, pedir-lhe para fazer de meu pai no meu disco. O Zeca gravou e saiu de lá divertido. Foi a primeira vez que trabalhei com ele. Nunca contei isto, digo sempre que a primeira vez que trabalhei com ele foi n’ Os Índios da Meia-Praia, no disco Com as Minhas Tamanquinh­as, em 1978. Foi um bocado teu pai, na música? Pai e irmão. Foi uma relação muito forte de amizade. Foi uma relação muito intensa, também a nível de trabalho – fizemos cerca de 170 concertos, talvez 50/50 entre estrangeir­o e cá, trabalhei nos discos dele e fui coprodutor com o Zé Mário Branco dos dois últimos discos. A tua vida muda com o Cavaquinho? Quando comecei com o Zeca descobri o cavaquinho. A experiênci­a com os cantautore­s ajudou-me a conhecer a nossa música e os instrument­os. Iam-me buscar porque eu era multi-instrument­ista. Um dia, o Pedro Caldeira Cabral e eu comprámos dois cavaquinho­s numa loja. O Zeca começou a ver-me tocar cavaquinho e gostou tanto que me pedia para tocar nos concertos, até para descansar um bocado a voz. Creio que a primeira vez que toquei cavaquinho em público foi na Alemanha e a reação deixou-me impression­ado. Depois aconteceu o mesmo noutros concertos. Comecei a estudá-lo melhor e fiz o disco. Sou compositor, produtor, orquestrad­or, já trabalhei em quase cem discos, mas é como se a minha carreira se tivesse decidido naquela altura. Comecei a fazer discos instrument­ais, à exceção do Graffiti, que é de 2010. O que tem o cavaquinho de especial? É um instrument­o a que acho muita graça, sou um músico rítmico e permite-me essa abordagem. É limitado porque é muito pequenino, só tem frequência­s agudas e torna-se chato se for tocado a solo. Funciona muito bem com a viola normal e um outro que fique, a nível de frequência­s, entre o cavaquinho e a viola. Pode ser uma braguesa ou uma guitarra portuguesa. O meu grupo atual é um quarteto que funciona como música de câmara, com a Sandra Martins no violoncelo, guitarra portuguesa e viola. Criaste a Associação Museu do Cavaquinho. És só tu? Tínhamos uma funcionári­a que foi para a Alemanha. Neste ano dediquei-o mais ao disco, até porque tinha dedicado três anos e meio à associação e esqueci-me de que sou músico. A associação não tem fins lucrativos, não tem fontes de rendimento. Eu precisava de trabalhar. Viajaste pelo mundo por causa do cavaquinho, sem ser para concertos? Por exemplo, fui a Madrid para me encontrar com pessoas de outras regiões, como as Canárias, onde também têm o cavaquinho deles, que é o timple. Fiz outra viagem à Indonésia, a convite do Ivan Dias, para um documentár­io para a televisão. Na Indonésia há um instrument­o de origem portuguesa chamado keroncong. Em Jacarta vimos um grupo com vários instrument­os, dois deles como se fossem cavaquinho­s, e desataram a cantar As Pombinhas da Catrina. Ficámos de boca aberta.

“Ligo a televisão e estou com um cavaquinho nas mãos, a brincar. De vez em quando há uma sequência de notas que me chama a atenção e então desenvolvo-as” “Tinha 6 anos e meio e estava em casa de um amigo a tocar bandolim. Pela primeira vez, toquei uma coisa que tinha ouvido na rádio, o Jingle Bells” “Em Jacarta, vimos um grupo com vários instrument­os, dois deles cavaquinho­s, e desataram a cantar As Pombinhas da Catrina. Ficámos de boca aberta”

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