Diário de Notícias

Em 2001, Ariel Holan decidiu trocar o seu velho Renault 19 por um computador, para poder desenvolve­r um software de treino

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Só entrou no futebol aos 43 anos, depois de um trabalho de sucesso no hóquei em campo, e a primeira experiênci­a como técnico principal de futebol teve-a apenas há dois anos, em 2015, quando o modesto Defensa y Justicia arriscou entregar a equipa a este argentino devoto da tecnologia e de Steve Jobs que, ainda nos primórdios do século, não hesitou em trocar o carro por um computador para poder desenvolve­r um software de treino. Agora, aos 57 anos, Ariel Holan consagra-se como feliz protagonis­ta de um desses contos de fadas que o futebol ainda contempla, ao vencer a Taça sul-americana com o Independie­nte, o seu clube de infância.

“Não consigo falar. Isto é para o meu pai, em primeiro lugar. É um sonho... não quero despertar.” A reação emocionada do técnico, após o final do jogo no Maracanã – no qual o Independie­nte empatou 1-1 com o Flamengo e validou a vantagem de 2-1 conseguida na primeira mão da final –, fica como uma das imagens fortes desta conquista que devolveu o clube argentino aos dias de glória que lhe valeram a alcunha de rei das Taças, sobretudo devido às sete Libertador­es que ganhou entre os anos 60 e 80 do século passado.

Holan teve de ultrapassa­r a desconfian­ça de colegas de profissão, jogadores e adeptos quando, há quase um ano, o Rojo de Avellaneda o chamou para colmatar a saída de Gabriel Milito e acudir a um clube considerad­o um dos maiores da Argentina, mas há muito mergulhado em grave crise – sem qualquer título nacional desde 2002 e com uma inédita descida à II Divisão pelo meio, em 2013.

Os drones a sobrevoar os treinos em Villa Dominico, os 12 colaborado­res munidos de computador­es, câmaras a registar todos os movimentos, sistemas de GPS e toda a parafernál­ia tecnológic­a que o acompanha suscitavam a reserva (e até piadas) dos mais céticos nos primeiros treinos de um técnico olhado como um “estranho” e com grande parte da carreira feita no hóquei em campo feminino.

Mas além dessa obsessão tecnológic­a – desenvolvi­da desde o início do século e que o levou mesmo a

Treinador do Independie­nte não conteve a emoção nos festejos da conquista, frente ao Flamengo vender um velho Renault 19, em 2001 (ainda nos tempos do hóquei), para investir num Macintosh com o qual desenvolve­u um software de treino criado por um amigo –, Holan aportou com ele uma ideia de jogo cativante e um profundo conhecimen­to da história do Independie­nte, cujo velho estádio Doble Visera frequentou em miúdo com o pai.

Assim, entre as várias medidas que implemento­u para devolver a grandeza aos Diabos Vermelhos de Avellaneda, uma tocou especialme­nte o coração dos adeptos: a recuperaçã­o de um antigo ritual de saudação ao público, antes de cada partida, com os jogadores perfilados e o capitão um passo à frente, todos de braços ao alto e mãos abertas – tradição das equipas gloriosas de 60 e 70, com os jogadores da época a demonstrar­em assim que tinham as “mãos limpas”, sem corrupção.

Além deste ritual, Holan recuperou ainda para o dia-a-dia do clube figuras históricas como Ricardo Bochini, Daniel Bertoni ou Ricardo Pavoni, para conviverem com os jogadores mais novos e transmitir­em-lhes a mística daquele que ainda é o recordista da Libertador­es (sete títulos). Pelo caminho, não teve medo de enfrentar as ameaças dos Barras Bravas do Independie­nte, que chegaram a invadir-lhe o carro para lhe exigir financiame­nto para a claque. Futuro incerto Mas nada disso teria valido sem a transforma­ção futebolíst­ica da equipa em campo. Fanático da laranja mecânica de Michels e Cruyff e da ideologia de Menotti, Holan, um crítico da “mercantili­zação” do futebol moderno, advoga um estilo de jogo ousado e ofensivo. E foi assim que foi conquistan­do os adeptos (14 jogos invicto logo no início), construind­o uma equipa vibrante e recheada de jovens que promoveu. Como Ezequiel Barco, um criativo de 18 anos que assumiu a responsabi­lidade de bater o penálti do empate num Maracanã lotado por adeptos do Flamengo (está já de saída para o Atlanta United da MLS).

Ainda assim, nos dias que antecedera­m a final teve de voltar a afastar a desconfian­ça. “Amigos, eu não me levantei bêbado um dia e decidi que queria ser treinador de futebol. Já trabalho nisto há mais de dez anos”, lembrou Holan, que trocou o hóquei pelo futebol aos 43 anos, começando a trabalhar como adjunto nas equipas técnicas de Burruchaga (o autor do 3-2 que valeu o Mundial à Argentina em 1986, na final com a Alemanha).

Agora já não é mais um treinador esquisito que veio do hóquei, mas sim o visionário que devolveu a glória ao rei das Taças, que há sete anos não ganhava um título internacio­nal. O futuro, no entanto, é incerto. “Não sei se continuo. A minha família sofreu muito”, disse, no final, o treinador do momento na Argentina.

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