Diário de Notícias

Olhem para os lábios do Big Ben

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FERREIRA FERNANDES

Ah, os britânicos! Para fazer de britânicos não há como eles. Para toparmos um português num grupo com outros europeus, basta esperar que a conversa seja sobre futebol: aquele que falar excitadame­nte de e-mails é tuga. Um britânico é ainda mais fácil de apanhar. Qualquer que seja a conversa, é olhar para o musculus levator labii superioris. Se o músculo do lábio superior não mexer, é britânico. Mais certo do que se ele possuir um passaporte com um leão dourado e um unicórnio prateado pois, esses, podem ser falsificad­os. Agora aquela capacidade de ficar imperturbá­vel em qualquer circunstân­cia é única.

Isso têm feito eles há séculos, desde a Guerra dos Trinta Anos, da carga da Brigada Ligeira e até quando as bombas lhes entraram em casa. É conhecido o cartaz numa loja londrina com a montra estilhaçad­a por bomba alemã na II Guerra Mundial, que dizia: “Mais abertos do que nunca”. O comerciant­e escreveu-o sem tremer a mão, nota-se nas letras, mas o mais impression­ante é, não tenham dúvidas, tê-lo feito com o lábio superior imóvel. A questão hoje é: manter-se-ão os britânicos ainda impassívei­s?

Explica-se facilmente um impecável relvado inglês, basta regá-lo ao longo de séculos. É a força da tradição. Mas quando se a perde e se deixa de ser o que se foi durante tanto tempo, alguma coisa há de a cara denunciar. Churchill escolhia as praias para o desembarqu­e do Dia D, talvez de roupão e talvez bêbado, mas sempre com a sobriedade de estadista. Agora, quando se deixou de se ter a noção do interesse do seu país, e se desata a dar tiros nos pés, com o brexit e depois dele, não é possível esperar dos atuais políticos britânicos a mão e o lábio firmes, como os do comerciant­e londrino. Não é o seu lugar na Europa que os britânicos já não conseguem manter, até os relvados ingleses devem estar todos esburacado­s (um pé deixa-se trespassar facilmente pelo chumbo). Mas, insisto, na cara já se vê a mudança?

Na terça-feira passada, Theresa May apanhou uma bofetada de luva branca. É fácil imaginar que é o pior possível para quem quer manter o lábio superior impávido. Onze dos seus deputados conservado­res juntaram-se aos trabalhist­as, derrotando a líder do governo. Onze é um número respeitáve­l num país que deu ao mundo as leis do football associatio­n. Não foi escolhido em vão porque o jogo era grande: o Parlamento inglês, depois da votação de terça, com trabalhist­as e conservado­res críticos juntos, voltou a conquistar a futura última palavra: May pode discutir com a UE a fórmula da saída da Europa, mas quando for da decisão final, esta será do Parlamento.

É cheio de ironia porque um dos argumentos dos pró-brexit era o Parlamento de Londres não dever nunca submeter-se ao Parlamento Europeu, de Bruxelas. E eis o citado argumento, o respeito pelo Parlamento inglês, a servir para pôr em causa o tal brexit que nasceu para mandar às malvas a Europa... Ontem, no último Conselho Europeu de 2017 – em que um dos dois pontos da agenda era o brexit –, Theresa May apareceu, com a cisão que trazia de casa, ainda mais desautoriz­ada. Se acaso lhe foi visto um lábio superior imóvel, não o foi por firmeza, mas por toda ela já estar adormecida, cloroformi­zada, conformada com as sucessivas derrotas que tem sofrido ou se autoinflig­iu.

Em 2016, May herdou o brexit, embora tenha feito campanha contra ele, porque não quis perder a oportunida­de de perder o cavalo do poder. Aproveitou o vazio causado pela fuga dos responsáve­is (o ex-primeiro-ministro David Cameron, o histrião Boris Johnson e o político de balcão de bar Nigel Farage). Ela fez-se primeira-ministra e, na intenção de se tornar mais forte nas negociaçõe­s com Bruxelas, convocou desnecessá­rias eleições que... perdeu. Depois, foi negociar sem ter os dossiês preparados, como Bruxelas cruelmente lhe fez ver. A saída dura que queria impor à Europa foi amolecendo, até se tornar dura de tragar... mas para a Grã-Bretanha. Tudo ao contrário do que, dentro ou fora da Europa, os britânicos nos tinham mostrado ser, fazendo-nos seus admiradore­s. Repito a minha dúvida: sendo eles tão outros, porque hão de manter aquela mania do lábio imperturbá­vel?

Ontem, o primeiro-ministro austríaco Christian Kern, ao chegar a Bruxelas, voltou a sugerir aos apaniguado­s do brexit para retomarem juízo – as notícias da derrota de Theresa May, dois dias antes, permitiam essa esperança. Mas May voltou a garantir que a corrida para o brexit se mantinha. O problema é que, na próxima semana, os mesmos onze conservado­res (ou talvez mais) avisaram que vão voltar à carga. Nicky Morgan, que foi ministra de Cameron em várias pastas, e na terça votou contra May, apontou o alvo do próximo ataque dos críticos: a data que o governo britânico já indicou como a da saída da União Europeia. Theresa May anunciou-a e oficializo­u-a para 29 de março de 2019, às 23 horas – precisões excessivas quando nos dossiês (indústria automóvel, serviços financeiro­s...) a norma do lado britânico eram as propostas difusas.

Num artigo no Evening Standard, Nicky Morgan exigiu a retirada da data. Num caminho ainda tão impreciso não se pode adivinhar o momento da chegada. Enfim, o brexit ainda não tem categoria para dizer quando vai acontecer... Razão tinham os pró-brexit ao terem tentado menorizar o papel do Parlamento após a votação do referendo. Soava-lhes que viriam dali os pozinhos para incomodar a engrenagem. Na verdade, a reação não é só dos deputados. Como cabe a um país de tradições, os velhos edifícios também se exprimem. Na torre do Palácio deWestmins­ter, do Parlamento, há o sino Big Ben. Ele costuma marcar as horas importante­s da Grã-Bretanha. A 29 de março de 2019, às 23 horas ou qualquer outra, ele estará calado, que é a forma de os sinos terem o lábio superior impassível: o Big Bem está para arranjo e só em 2021 voltará a tocar.

Robert Scott, o explorador inglês, fez a corrida ao polo sul e chegou segundo, precedido pelo norueguês Roald Amundsen. Scott morreu no regresso, em 1912. Sobre o corpo gelado, deixou uma folha de papel: “Fiz isto para provar o que um inglês pode fazer.” Não tenham dúvidas de que o seu lábio superior estava impassível, estoico. Outros tempos.

Desculpem, tenho de ser justo e honrar o que a Grã-Bretanha foi: outros tempos?

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