“Só um terço dos jovens chega ao superior. Não vamos ter pessoas para trabalhar”
“Há um estigma na nossa sociedade de que ir para a faculdade é uma perda de tempo e de dinheiro”
Corre-lhe nas veias a História, vocação herdada do pai – economista de profissão mas um apaixonado das humanidades, que sempre que podia enfiava a mulher e os cinco filhos no carro e ia por aí fora mostrar-lhes o país. Mas quaisquer cinco minutos de conversa chegam para entender que Maria Fernanda Rollo tem o ensino no ADN. Muito mais do que a profissão que escolheu e que fez dela professora universitária logo que acabou o curso, ou mesmo do que a paixão pelo conhecimento, é o gosto por passar esse conhecimento que a entusiasma. Mesmo agora, enquanto secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, essa é a chave para entender aquilo que define como a sua agenda enquanto governante.
“O que faço, na verdade, é um trabalho de equipa mas conseguimos que tenha um impacto diferente. Se conseguirmos criar contexto para sensibilizar e aumentar a consciência da importância da formação, dou-me por feliz. E isso passa por algo muito difícil, que é a consciencialização social. Nunca me conformarei com a possibilidade de um jovem querer estudar e não poder. O direito, o acesso ao conhecimento não pode ser negado. Por outro lado, acho que não há legitimidade para não se assumir o conhecimento como bem público e comum. Essa é a minha agenda mais querida: impor uma lógica de ciência aberta – o conhecimento financiado com dinheiros públicos tem de ser devolvido à sociedade.” A preservação da língua através da ciência em português – feita por portugueses e pelo universo de países de língua portuguesa, valorizando a nossa herança e podendo ser partilhado por todos” – é outro assunto que lhe é caro.
Estamos à mesa do Citrus Grill, restaurante do Hotel Marriott Lisboa, escolhido pela conveniência da curta distância que vai dali à se- cretaria de Estado, nas Laranjeiras. “Têm um buffet bom e aqui perto não há muito sítio onde se possa ir.” E, apesar de ser um dia chuvoso, a parede de vidro com vista para um pátio interior bem arranjado cria um ambiente agradável.
Aos 52 anos, os dois últimos a coordenar a pasta da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Fernanda Rollo não disfarça aquilo que é. É uma professora daquelas que quem teve mais sorte apanhou meia dúzia durante todos os anos em que estudou: absolutamente dedicada e apostada em que os “meninos” – palavra açucarada que lhe sai antes de trocar por “jovens” ou “alunos” – aprendam. Não apenas a matéria, mas a desenvolver o raciocínio, o interesse, a curiosidade, o talento. “As competências sociais e culturais, a sua forma de estar é hoje fundamental para eles, é o que vai determinar os empregos que vão conseguir e a forma como vão desempenhar as tarefas que lhes forem atribuídas. E hoje já são muitas vezes os jovens que escolhem as empresas onde querem trabalhar, e não o contrário. Já temos jovens muito qualificados com formação técnica muito boa e que põem em primeiro lugar mais a capacidade de terem um projeto a que estejam associados do que o dinheiro que podem receber. Isso implica mudanças na formação superior. Eles têm de ter boas notas mas também outro tipo de competências e essas competências têm de ser mais valorizadas – em áreas de crédito no voluntariado, por exemplo, como já existem em várias faculdades.”
Hoje o objeto do seu trabalho não são diretamente os alunos, mas não os perde de vista. Entende que o que faz tem de ter esse fim de tornar a ciência e o ensino superior o mais úteis possível aos jovens, garantindo-lhes as ferramentas para se destacarem e prosperarem num mundo globalizado e altamente competitivo. E isso passa por mudar contextos – das instituições de ensino superior mas também da ligação destas e dos estudantes com as comunidades, o conhecimento, a sociedade.
“As nossas instituições hoje têm quase todas um contexto de responsabilidade social muito grande e muitas vezes são os meninos que se juntam, com enorme capacidade de organização e sofisticação. E as instituições também têm projetos, trabalham com as comunidades, o envolvimento é considerável e é das coisas mais curiosas que estão a acontecer no superior. É um dos desafios mais estimulantes.Veja os politécnicos: a sua distribuição no território ajuda à coesão social, à dinamização, contraria baixas taxas demográficas, potencia as relações com o tecido produtivo mas também social e cultural. Eles são importantíssimos na definição de território.”
Distraídas com a conversa, ignorámos a imensa e sedutora escolha de saladas e regressámos à mesa ambas com robalo no prato e legumes salteados a acompanhar. À água que já estava na mesa, eu juntei uma imperial e prosseguimos onde tínhamos interrompido. Entusiasmada, Fernanda vai explicando que as faculdades deixaram de ser espaços fechados, estanques, e passaram a ter uma relação com o exterior. “É a ideia do derrubar muros de dentro para fora – as bibliotecas, por exemplo, já são assim. Mas a sociedade também tem de ajudar de fora para dentro.” Defende que a ciência é melhor sempre que produzida para a sociedade, sempre que se assume um compromisso social, numa lógica de ajudar a sociedade a resolver problemas e desafios, e sublinha que isso já passa também pelos alunos e por um envolvimento da própria comunidade. “A formação de conhecimento está a abrir-se e a produção de conhecimento já acontece em cenários de cocriação, em conjunto com a sociedade em vez de ser só para a sociedade.” O que é importantíssimo para conseguirmos formar pessoas competitivas, multiculturais, que falem mais de duas línguas além da materna e que pensem global. E, nesta mudança, 30 anos de Erasmus – sendo Portugal dos destinos mais procurados hoje – foram fundamentais. “É o programa mais bem-sucedido de sempre. Todos são cúmplices no sentido positivo e através dele criam-se redes que não desaparecem, esbatem-se as fronteiras geográficas.”
É claro que um mundo integrado só é possível nesta era da digitalização e esse é outro desafio que a governante vê como prioritário. “Esta revolução digital é impressionante e uma das grandes mudanças que introduziu foi ter acelerado tudo e ter entrado dentro das nossas casas. Então no emprego é muito interessante. Muitas profissões vão desaparecer e haverá uma alteração profunda do padrão atual de atividades profissionais, mas nem conseguimos imaginar o que vai aparecer. Certo é que tudo irá passar pelo digital e daí apostarmos tanto nesse programa. É uma linguagem a que não podemos escapar, das artes à engenharia. O que se exige aos jovens é brutal, mas o saber não deve desaparecer pelo caminho, o processo de aquisição de saber é que tem de ser diferente.”
Exemplifica com um caso pessoal. Quando uma das suas filhas – tem duas, a mais velha, de 22 anos, mestre em marketing comunicacional, a outra, de 16, violinista – estava no básico, teve uma aula de explicação do funcionamento das nuvens em que puseram os miúdos todos a fazer experiências mas nunca se lhes explicou o que era uma nuvem. E conclui que tem de haver equilíbrio, porque o conhecimento tem um valor inestimável. “Termos competências mas não consciência do que essas competências podem servir é como fazermos opções sem estarmos conscientes do que estamos a escolher.”
Porque deu aulas toda a vida, pergunto-lhe se nota diferença entre os alunos que tinha há 20 anos e
os de agora. Diz-me que a experiência é a principal distinção. “Eu dantes dizia que desapareceu a classe média nas notas e isso é uma lição. Tem que ver com alguns escolherem as áreas e terem capacidade de as desempenhar e outros estarem ali só porque sim. Hoje os alunos são melhores e o que se espera deles em termos de variáveis e tipo de conhecimento é diferente do que se pedia há 15 anos, quando nem tinham acesso a bibliografia estrangeira. Não são melhores nem piores, têm outras ferramentas. O acesso ao conhecimento é completamente diferente. Hoje os bons são muito bons, quando têm capacidade para usar tudo o que têm ao seu dispor.”
Ainda assim, entristece-a que haja aspetos que permanecem inalterados, sobretudo o determinismo decorrente do contexto social e cultural, que acompanha os miúdos desde cedo e tende a agravar-se. As famílias com contexto social e cultural mais alto – que não corresponde necessariamente ao financeiro e económico – fazem o percurso completo, as outras não.
“Eu adoro dar aulas e adoro jovens. Aprende-se imenso com eles. Mas temos de ter consciência de que os que chegam ao ensino superior são heróis, são resilientes com muito mérito.” Porquê? Não deviam as coisas estar mais facilitadas? “Só um terço dos jovens em idade de frequentar o ensino superior é que lá chega. Lançámos campanhas para contrariar isso porque temos de estar preocupados com o país. Cruze isto com a curva demográfica, a assimetria na distribuição da população, a convergência para determinadas instituições do ensino superior e sua distribuição no mapa e o cenário é muito preocupante. Sobretudo quando, entre os que chegam, muitos ficam pelo caminho, há níveis enormes de abandono logo no primeiro ano. E isto quando precisamos de recursos humanos cada vez mais qualificados.”
É uma realidade que a perturba, sobretudo quando se foca no “estigma que existe na nossa sociedade de que é perda de tempo e só se gasta dinheiro em ir para a faculdade. O que é disparate, porque nunca haverá licenciados a mais. A probabilidade de ter emprego sobe 82% a 84% se tiver um curso, mas entre os meninos que frequentam o ensino profissional, só 12% a 15% passam para o superior. Temos falado muito com a Educação e o secretário de Estado está muito preocupado com o determinismo no acesso ao superior – encontramos muita gente mais preocupada com as notas e não com a aprendizagem, que acha que se os meninos têm notas más devem ir para o profissional. É preciso que a sociedade tenha noção disto: nós não vamos ter pessoas para trabalhar!”
Reconhece que as instituições estão a cumprir o seu papel: nunca o superior produziu tantos recursos qualificados como hoje. “O ónus da empregabilidade não é problema do superior. A sociedade está a aproveitar e bem os recursos humanos que estamos a formar, só que muitos nem nos chegam e isso não é falha nossa, tem de ser um desígnio da sociedade. Se for uma escola profissional do interior – como as a que eu vou regularmente –, vai ver turmas inteiras que não vão para a faculdade porque já estão contratados para ir para França ou porque a mãe tem medo de que se afastem 20 km de casa ou simplesmente acham que é perda de tempo.”
Recorda os “500 mil analfabetos que ainda existem em Portugal” e faz ligação direta entre o insucesso escolar e os níveis de literacia dos pais, em “contextos muito sensíveis, cultural e socialmente, não só no interior”. E defende que temos de trabalhar em conjunto e chegar às famílias. “As famílias têm de criar contextos para que os jovens estudem. Muitas vezes a condição económica é difícil mas as bolsas de ação social escolar têm ajudado muitíssimo e as autarquias também. E as empresas têm de entender que não vão ter recursos humanos se não houver essa consciência. É muito angustiante ver isto. Nas empresas da área das TIC, só à cabeça temos necessidade de 15 mil postos de trabalho que não existem. Há empresas estrangeiras a querer vir para Portugal e perguntam: mas há 200 engenheiros?” Considera por isso que professores do secundário e pais têm de ser cúmplices e solidários neste desígnio. E ao superior aponta ainda um caminho a fazer para responder a esses desafios, que passa por estimular as práticas culturais dos jovens – “não é à toa que estamos de novo a investir no Plano Nacional de Leitura, e desta vez no ensino superior e na ciência e tecnologia também. No C ao Quadrado (ciência e conhecimento), estamos a tentar convencer de que temos de ter mais ciência na cultura, e vice-versa, no superior. As faculdades já investem nisso, mas têm de investir mais; enquanto esse contexto não for apropriado pelas pessoas tem de haver esse reforço mais ou menos artificial de criar contexto para avaliação dessas práticas culturais, que hoje também têm reconhecimento em termos de empregabilidade. As faculdades têm de suprir esse défice social. As pessoas têm de ter noção de que o conhecimento é a riqueza maior e o que proporciona maior mobilidade social e satisfação social e pessoal”.
Quando regressamos de nova visita ao buffet com os pratos cheios de fruta fatiada, conclui que esta passagem pelo governo é uma forma de “pagar o tributo, por ser uma privilegiada”, que sempre pôde optar e teve as ferramentas e a formação que lhe permitiram encontrar contextos de trabalho e de bem-estar, achar possível fazer um caminho diferente. Aceitaria fazer outro mandato? “Tenho muitas saudades de escrever e de ler, de fazer História, de estar com os alunos e com investigadores. Penso em cumprir agora estas agendas e depois logo se vê, porque o meu mundo é a investigação histórica.”
Por agora, sempre que não está a trabalhar está com o marido (professor reformado do Técnico e catedrático mais antigo do Instituto Superior de Gestão, hoje a trabalhar no BERD, em Londres) e as filhas. “E oiço muita música, sobretudo erudita, vou à ópera e a concertos sempre que posso.”
Nascida no Congo Belga, tal como todos os irmãos (a mais velha, com 15 anos mais do que Fernanda), quase não tem memórias da África da sua infância mas é lá que diz sentir-se em casa – “todos vivemos sob esse ascendente”. E talvez por isso identifique como um dos principais trabalhos que está a desenvolver a ciência em português, que passa muito pela partilha de conhecimento com o mundo lusófono, projetos-piloto na ciência aberta, criação de mais contextos de proximidade em áreas como a biodiversidade ou a saúde.
Já com os cafés à frente e retirada da equação a possibilidade de pagar eu o almoço – “nem pensar!, rachamos entre as duas” –, fala-me sobre repositórios digitais enquanto oportunidade e desafio. Mostra-me o mapa da distribuição de produção de conhecimento no mundo para que confirme eu própria a confrangedora desigualdade, a concentração quase absoluta no hemisfério norte. Essa é uma das suas batalhas. “Estamos a pôr os nossos repositórios digitais em ligação com África, com os países de língua portuguesa, e a associar-nos a todos os repositórios digitais da América Latina – imagine a projeção que terá uma coisa nossa posta à disposição de tamanha população.” É também uma forma de preservar a língua, mas sobretudo de garantir algumas ferramentas a quem tem tão poucas. “Porque é que em Moçambique não se tem conhecimento sobre o zika no Brasil? A informação em acesso aberto faz toda a diferença.” São mudanças que demoram uma geração a produzir efeitos, mas que valem a pena. Uma coisa é certa: quando voltar às aulas, Fernanda Rollo terá deixado uma marca.