Diário de Notícias

As chuvas de estrelas não se deixam ver. O que é que isso interessa?

- ANA SOUSA DIAS

Nunca consegui ver uma chuva de estrelas. Cada vez que é anunciada uma, geralmente como a maior do ano, acontece sempre qualquer coisa que me impede de assistir a esse espetáculo que na minha cabeça é um fogo-de-artifício de dimensão astronómic­a. Umas vezes porque estou num lugar que não permite visibilida­de, com luzes artificiai­s a ofuscar o céu, outras porque estou a dormir, outras ainda, como aconteceu nesta semana, porque as nuvens tapavam tudo. Não é que não tenha tentado noutras ocasiões. Passei duas ou três noites ao relento – tenho testemunha­s – com cobertores e chás quentes. Lá vai uma, olha outra ali (daí a dez minutos) e ponto final, vou mas é dormir.

Apesar de nunca ter conseguido observar, eu sei que ocorre, tal como nunca vi uma aurora boreal nem a Ayers Rock no meio da Austrália e sei que existem. Vi fotografia­s, filmes. Fazem parte da lista de coisas que gostava de ver um dia, uma lista sempre em evolução.

Vá lá, consegui escrever isto tudo sem falar na senhora que criou uma associação em vez de ficar de braços cruzados à espera de ver o filho morrer. Cá está o caso Raríssimas, tinha de ser. Ou era isto ou a história sórdida das adoções da IURD, andamos a pensar nisto a semana toda. Doenças mais raras do que as chuvas de estrelas, situações que nos fazem parar para pensar que há pais que se confrontam com filhos que têm mais problemas do que bronquites e gastroente­rites, birras para lavar os dentes e ir para a cama.

Então o ponto de partida era mesmo este: uma criança com uma doença rara sobre a qual fui ler – um caso em cada dez mil pessoas, um gene identifica­do em 2004. Não descrevo os efeitos desta anomalia genética, quero apenas dizer que aquela criança em particular morreu e a associação continuou, ampliou-se e foi muito acarinhada.

O que aconteceu pelo meio é um deslumbram­ento chico-esperto que raia o doentio, numa escalada que foi possível pela impunidade e pelo medo. Uma coisa antiga, esse medo de denunciar o chefe mesmo se os erros estão à vista e são um escândalo. Isto seria uma história triste de “subiu-lhe à cabeça” se os dinheiros não fossem públicos e se a senhora em questão não se tivesse provado uma especialis­ta em manipular influência­s.

A impunidade acabou, tudo o indica, porque a denúncia finalmente foi feita. Haverá julgamento, que talvez se arraste anos e anos pelos tribunais. Creio que pensámos com alívio, quando se demitiu do cargo, que se afastava do filme, que a vida podia continuar, mas eis que aposta na vitimizaçã­o – é típico destas perso- nalidades, disparar culpas para os outros –, numa atitude de desafio de daqui não saio, sabendo que um despedimen­to por justa causa é um processo demorado. E os efeitos colaterais continuam em desenvolvi­mento, a pôr em causa a generalida­de das instituiçõ­es de solidaried­ade social. E a fazer pensar na responsabi­lidade do Estado: é impensável que não possamos confiar no Estado se temos uma vida tão definitiva­mente marcada pela doença, a deficiênci­a. Que todos os apoios possam ser postos em causa pelo comportame­nto de uma pessoa não sujeita a controlo sistemátic­o.

Entretanto, a fogueira popular está ateada, com momentos altos nas redes sociais em delírio. As coisas que li nestes últimos dias. As coisas que as pessoas escrevem com a página do Facebook aberta. Não sinto nenhuma afinidade com a personagem em causa, o comportame­nto dela causa-me repulsa total. Mas mais uma vez me espanto com os comentário­s à rédea solta que traduzem por escrito tudo o que passa pela cabeça.

Penso na angústia dos que dependem da instituiçã­o. Os doentes que fatalmente vão sentir a perturbaçã­o no ar, as famílias que se sentiam confortada­s, os que diariament­e lá trabalham. A perplexida­de perante a agitação de um quotidiano já de si complexo. A lista das coisas que estas pessoas gostariam de fazer um dia, tão radicalmen­te diferentes da minha insignific­ante pena de não conseguir ver uma chuva de estrelas realmente de dimensão astronómic­a e inesquecív­el.

Tentei ver chuvas de estrelas, passei noites ao relento, com cobertores e chás quentes. Lá vai uma, outra daí a dez minutos, vou mas é dormir O que aconteceu pelo meio foi um deslumbram­ento chico-esperto que raia o doentio, numa escalada possível pela impunidade e pelo medo E penso nos doentes que fatalmente vão sentir a perturbaçã­o no ar, as famílias que se sentiam confortada­s, os que diariament­e lá trabalham

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