Diário de Notícias

Um filme para pensar em tempo de Natal. Com post scriptum

- ANA SOUSA DIAS

Bastaria ver Brenda Blethyn no seu pequeno papel e já a noite estava ganha, aquele rosto capaz de todas as nuances da maravilhos­a detetive Vera Tal como no livro, as mudanças históricas dentro das mudanças da própria literatura, a casa de bonecas dentro da casa da realidade Podem mandar sms noutros dias, a 27 ou 28, como se me tivessem enviado pelo correio um cartão da UNICEF e chegasse com grande atraso

Estava eu a fazer zapping enquanto espreitava o apuramento da votação na Catalunha quando me apareceu um filme com dez anos que não tinha visto. Expiação, de Joe Wright. Tinha lido o romance de Ian McEwan que lhe deu origem e é verdade que, se gosto de um livro, hesito em ver adaptações. Manias. O filme estava ali a tentar-me.

Deixei Arrimadas e Puidgemont em suspenso. Já toda a gente tinha percebido que as percentage­ns iam fazer esperar longamente qualquer espécie de solução, e fiquei a ver o filme. É redundante dizer como reconforta ver atores bons e bem dirigidos, aquela escola britânica que nos reconcilia com isto de sermos espectador­es. Bastaria ver Brenda Blethyn no seu pequeno papel e já a noite estava ganha, aquele rosto capaz de todas as nuances da maravilhos­a detetive Vera da série de televisão homónima e igualmente maravilhos­a. Redundante também falar da segurança do realizador e tudo por aí fora, mas aqui o redigo porque de novo me envolvi naqueles ambientes tão bem produzidos, na decadente aristocrac­ia como na mais miserável situação de guerra.

Tudo isto faz parte do encantamen­to de ver um filme assim, sem clichês, cuidado ao pormenor, num vaivém temporal que nos explica o que pouco antes não era claro. Tal como no livro, as mudanças históricas dentro das mudanças na própria literatura, a casa de bonecas dentro da casa da realidade.

E depois há a expiação, a mancha que corrói a vida da escritora até que deita mãos ao romance onde tenta recompor o que infantilme­nte destruíra. E aí é que está o ponto, na culpa que aquela mulher carrega, ela que das brincadeir­as da infância passara para o inferno dos hospitais dos retirados de Dunkerke, um desespero temperado pela melancolia de Debussy. Ao longe, está a culpa sem escrúpulos do homem que desencadeo­u o erro de Briony, o snobe industrial do chocolate das rações de guerra, interpreta­do por Benedict Cumberbatc­h (gosto de escrever o nome dele apesar de ter de verificar três vezes se está certo).

A culpa, o perdão que a escritora decide impossível, a redenção tentada no ato da escrita, o lugar do autor dentro da obra literária, o argumentis­ta que pega num texto e o torna cinema. Um filme e um livro com pano para mangas para pensar. Não que sejam os melhores de sempre mas para uma noite em casa, com o frio a apertar e as notícias a prender-nos ao sofá, ver Cecilia/Keira Knightley e Robbie/James McAvoy sabe muito melhor do que ter na frente um senhor de penteado estranho que se foi abrigar noutro país, como se fosse um valente exilado a fugir de uma ditadura sanguinári­a.

Depois do filme, já se percebeu, regressei à Catalunha. O resultado previsto estava confirmado. E ontem voltei a pensar no Natal, esta virose que termina pontualmen­te, cumprindo o calendário e invadindo-nos de filas, confusões e, perdoem-me a fraqueza e a franqueza, daqueles inenarráve­is anúncios de perfumes franceses, o mau gosto com o fausto à la Versailles que nos faz pensar com generosida­de na pobre Popota. Tanto frasco de perfume, tanta pomba assassinad­a, tantos brilhantes escusados.

Diz o calendário e é forçoso cumpri-lo: é tempo de preparar a festa que a cada ano é igual e tão diferente na composição das mesas familiares. A algazarra das crianças há de sobrepor-se aos lugares vazios. E como estamos em maré disso, que a força esteja connosco. P. S. – Aproveito este espaço para pedir aos amigos e afins que não me enviem sms de boas-festas amanhã, porque estarei concentrad­a a ver explodir os sonhos na frigideira e ferver a calda de açúcar. São momentos de risco, prefiro não ser distraída por campainhas. Podem fazê-lo noutros dias, a 27 ou 28, como se me tivessem enviado pelo correio um cartão da UNICEF e chegasse com grande atraso (tanto que havia para dizer sobre o descalabro dos CTT depois da privatizaç­ão). Com o tal atraso faz-se um dois em um e resolve-se logo os votos para os 365 dias do próximo ano. Sempre se ganha um tempo para preguiçar. Terminar o ano a invocar o direito à preguiça parece-me bem.

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