Diário de Notícias

O Natal dos parvalhões

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Queria não escrever sobre o Natal. Qualquer coisa profunda sobre o país, o ano saboroso, a deslocaliz­ação do Infarmed para Jerusalém, os Correios, digo sempre os Correios com maiúscula nunca os CTT, a Catalunha e a Arrimadas, o salário mínimo, a Santa Casa como se fosse “a santa casa” com o Montepio pela goela abaixo. Mas porque é Natal só me apetece falar do Natal, não do Natal visto como a orgia das compras, nem do Natal visto como o tempo da paz e do amor (violinos). Do Natal real. Nem é bem do Natal real como um todo, é do Natal real à mesa. Porque o Natal é reencontra­r aquela pessoa que não gosta de bacalhau, ou de frutos secos, ou de sonhos, ou de queijo da serra, e ter pensamento­s pouco católicos.

Como qualquer povo que há poucas gerações passava fome, o português é um povo muito esquisitin­ho com a comida com um exército de mães a fazer comida especial para os meninos, diferente da do resto. E não há melhor arena para o desfile dos esquisitos do que o Natal. Porque o Natal, ao contrário dos outros dias todos, tem pratos marcados, e o esquisito não tem fuga possível se não sair do armário com a sua esquisitic­e. E há outra coisa, é que a comida do Natal tem sabor. E comida com sabor é um problema para o esquisito.

Há sempre aquele genro que não gosta de bacalhau, por causa do sabor, ou não gosta de bacalhau com couves por causa da textura, ou não gosta do bacalhau com couves desta maneira. E este parvalhão, que merecia passar a noite a pão e água, é normalment­e brindado com um prato especial porque, claro, é Natal e é tempo de concórdia. Não é tempo de o parvalhão passar a gostar de bacalhau, ou de fazer um esforço para comer bacalhau, ou até de fingir que gosta de bacalhau. Não, faz-se um bife, ou um lombo de porco para o parvalhão que não gosta de bacalhau. E dizem invariavel­mente estes mimadões, numa chantagem que julgam que os desculpa, que nos natais deles faziam-lhes sempre comida especial, como se isso justificas­se alguma coisa que não seja estender o anátema às famílias deles que lhes faziam a comida especial. E agora à nossa, que não custa nada, deixa, há sempre mais quem queira provar, não te metas com ele.

Depois com os doces há uma categoria que é a do não gosto de doces de Natal. Tipo não gosto de literatura ocidental, ou de música que tenha guitarra, ou de cidades.

Desde logo o cânone doceiro de Natal é muito abrangente para que doces de Natal tenha a precisão que justifique um embargo técnico global. Gostar de doces e não gostar de doces de Natal é uma forma de sociopatia que só ainda não foi descrita no Manual Diagnóstic­o e Estatístic­o de Transtorno­s Mentais porque deve haver por lá gente que também não gosta de aletria. É que uma coisa é ter manias quanto à aletria – e nisso das manias não há quem bata o português – uns gostam dela mais para o rijo, outro mais para o mole, uns mais corrida outros menos, mas isto ainda se entende – outra é não gostar.

Qual será a pena reservada no inferno para os que nunca cometeram uma rabanada? Será maior ou menor do que aqueles que não gostam de sonhos, que olham para a calda como se fosse ranho, que comem meio sonho, partido com faca e garfo, para não parecer mal. Pode gostar-se mais de sonhos de abóbora do que dos normais, ou mais dos normais, mas não se pode não gostar de sonhos. Ponto.

E para terminar um bolo-rei, o teste máximo da esquisitic­e, porque tem frutas cristaliza­das e frutos secos, e portanto tanto enoja quem não gosta de cereja cristaliza­da como quem não gosta de nozes. Admitamos que as cores, espessura e sabor de algumas das frutas cristaliza­das do bôrrei não apelam aos sentidos, os verdes kriptonite e os laranjas bic laranja, mas há que comer com fé, sem medo de trincar a fava e de ficar com as mãos pegajosas, e não escolher ao partir para evitar a fruta cristaliza­da, ou deixar para o lado.

Havendo esmero na parte dos queijos, há sempre aquele que não gosta de queijo da serra, ou, mais comum, aquele que não gosta de queijo, por causa do sabor e do cheiro. Triste vida que deve ter quem não gosta de queijo.

Dizem-me que devemos respeitar os outros, e que gostos não se discutem. Mas continuo a acreditar que só mesmo os gostos é que se discutem.

E com este espírito católico de paz e amor desejo a todos uma boa consoada, uma boa missa se for o caso, e um bom descanso. É que amanhã é dia dos parvalhões que não gostam de cabrito. Por causa do sabor.

Natal é reencontra­r aquela pessoa que não gosta de bacalhau, ou de frutos secos, ou de sonhos, ou de queijo da serra, e ter pensamento­s pouco católicos Gostar de doces e não gostar de doces de Natal é uma forma de sociopatia que só ainda não foi descrita no Manual Diagnóstic­o e Estatístic­o de Transtorno­s Mentais porque deve haver por lá gente que também não gosta de aletria

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