Diário de Notícias

Pode uma discrimina­ção tão flagrante e ofensiva ser só e apenas “uma questão religiosa”? A religião é uma isenção das regras constituci­onais?

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denominada, desde Santo Agostinho, como ‘a apóstola dos apóstolos’, senão apóstola? E Ele contemplou-a com a coisa mais importante, assistir à ressurreiç­ão. Escolheu-a. Há aliás, num dos textos apócrifos [os textos que, na seleção para a coletânea que é a Bíblia, foram deixados de fora], o Evangelho de Maria, um diálogo entre Pedro e Maria Madalena em que este não percebe porque é que Jesus lhe apareceu a ela e não a ele.” Além disso, lembra, foram as mulheres que ficaram com Jesus na crucificaç­ão: “Os homens desaparece­ram.”

Paradoxalm­ente, foi talvez o ter-me interessad­o pelo debate interno, religioso, a impedir-me de fazer a tão límpida pergunta de Teresa Beleza. Como é que num país cuja Constituiç­ão proíbe a discrimina­ção com base no género e na orientação sexual, que subscreveu uma Convenção Europeia com o mesmo princípio, se convive tão pacificame­nte com esta? Seria igualmente pacífica esta convivênci­a caso a interdição fosse “racial”? Se o papa dissesse “está fora de questão negros serem padres” a reação seria a mesma que ante o reiterar da interdição das mulheres? Porque é que o racismo parece ser tão mais inadmissív­el, como princípio proclamado, do que o machismo? Porque é que a exclusão de não brancos de certas funções nos cultos, como sucedeu na Igreja Mórmon americana até ao final dos anos 1970 – quando foi obrigada a proclamar uma “revelação divina” para mudar a regra – parece muito mais chocante do que a exclusão das mulheres ainda hoje?

Um dos motivos é que a existência de uma diferença “fundamenta­l” entre homens e mulheres que lhes determina “funções diferentes” e uma hierarquia de poder é uma crença ainda profundame­nte arreigada e “naturaliza­da”, mesmo nas sociedades ocidentais. Aliás o próprio Estado português desrespeit­ou a Constituiç­ão ao decretar as Forças Armadas parcialmen­te interditas às mulheres até à última década do século XX. Outra razão é a ideia de que esta é “uma questão religiosa”, na qual o Estado não pode nem deve interferir, pelo princípio da separação e pelo respeito pela liberdade religiosa. Mas pode uma discrimina­ção tão flagrante e ofensiva ser só e apenas “uma questão religiosa”? Uma empresa pôr um anúncio a dizer que só contrata homens é ilegal, mas uma instituiçã­o religiosa estabelece­r que mulheres não prestam para líderes espirituai­s não é? A religião é uma isenção das regras constituci­onais?

O princípio da separação implica que o Estado não sabe – não conhece, não toma partido – de religiões; não que as coloca acima de escrutínio legal. Permitir discrimina­ções inconstitu­cionais invocando tratar-se de princípios religiosos é dizer que se considera existir uma ordem superior à constituci­onal – ou seja, submeter o Estado à religião, numa espécie de teocracia soft. A estreia em Portugal de Diário de Uma Serva, a série baseada no livro da canadiana Margaret Atwood que descreve uma sociedade dominada, por via de um golpe de Estado, pela literalida­de bíblica e na qual as mulheres perderam todos os direitos, é um bom mote para este debate que nunca tivemos a coragem de fazer.

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