“Desde que sou gente, os espelhos sempre me intrigaram e seduziram”
Pensou e organizou Do Outro Lado do Espelho, a exposição que pode ser vista até 5 de fevereiro na Gulbenkian. Diz que não é bem a mostra que imaginou e que os espelhos estiveram sempre presentes na sua vida, desde que brincava conversando com a sua imagem
Como aparece esta exposição?
A National Gallery [Londres] tem neste momento uma exposição sobre espelhos [Reflections,Van Eyck & the PreRaphaelites]. Têm uma conferência de dois dias sobre o tema dos espelhos e, como souberam que eu tinha esta, convidaram-me. Estou a organizar um powerpoint para apresentar lá e começo com uma fotografia minha aos 2 anos.
Com um espelho?
Não. Depois, sou eu de novo aos 9 anos [quando o pai lhe ofereceu Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll]. Desde que sou gente, os espelhos intrigaram-me e seduziram-me. O meu quarto de brinquedos tinha um guarda-fatos com um grande espelho. Como não tinha companheiros de brincadeira – os meus irmãos eram muito mais velhos do que eu – eu fingia que tinha ali alguém comigo.
Conversava com o espelho?
Sim, como o Svyato do filme do Victor Kossakovsky [na exposição], que começa a reconhecer-se no espelho. Não tenho noção de achar que era outra. Achava que era eu, falava alto com as bonecas, sempre brinquei muito com bonecas, nunca fui maria-rapaz. É a funcionária mais antiga da Fundação Gulbenkian? Entrei em janeiro de 1968. A sede da Fundação ainda não estava construída, estava quase pronta. O museu funcionava no Palácio Pombal em Oeiras. Eu dava explicações mas apanhei só alunos burros e não queria isso para a minha vida. Uma amiga trabalhava no museu e disse-me que precisavam de alguém para catalogar os livros em alemão gótico da biblioteca Vianna da Motta.
Trabalhou em Oeiras?
Sim. Depois fui correspondente de línguas no arquivo fotográfico e em seguida assistente da conservadora de Pintura, Maria Helena Soares Costa. Entretanto, estava casada com um senhor que ia fazer um doutoramento em Bristol e, num congresso, na Fundação, encontrei o diretor e o chefe da oficina de restauro da City Art Gallery de lá. Convidaram-me para trabalhar e disseram-me que podia fazer o curso de conservadora através da Museum’s Association.A minha primeira exposição foi feita em Bristol.
E tornou-se uma grande especialista.
Não me considero especialista. Tenho o gosto das coisas e escrevo razoavelmente. E penso. Vai-se lá com a prática.
Para a exposição foi buscar obras a vários lados?
Na coleção antiga da Gulbenkian, consegui recolher alguns livros e O Espelho de Vénus do Burne-Jones. Eu tinha feito uma recolha ao longo dos anos nas viagens que fiz. Procurava imagens de obras com espelhos. A exposição era só de pintura, depois teve um desenvolvimento. Tinha um projeto aprovado, mas chegou a Penelope Curtis…
… a diretora do Museu Gulbenkian…
… que veio da Tate. Apresentei-lhe o projeto e torceu o nariz, por serem obras fantásticas e difíceis de conseguir. Aquilo ficou na prateleira imenso tempo, às tantas ela propôs-me que fizesse o primeiro pedido. Foram pedidas 40 pinturas e 14 foram aceites.
Não é a mostra que tinha idealizado?
Não é, e tive de engolir muitos sapos, muitos mesmo. Eu tinha-a sempre idealizado para a galeria de cima, a galeria nobre da Fundação, e remeteu-a para a galeria de baixo. Depois, à medida que se começava a ter coisas, voltou outra vez para a de cima. Deu-me uma ajudante, a Leonor Nazaré, uma pessoa muito competente, mas tem sempre um ar muito sério e eu pensei “ai meu deus como é que isto vai ser?” Simplesmente, correu muito bem, ela é corretíssima, nunca me impôs nada. Só me interessavam obras que tivessem representação de pessoas, que tivessem ligação com pessoas, não me interessava uma coisa abstrata.
A montagem é de Mariano Piçarra.
É o melhor museógrafo que existe neste país. Já tinha feito muitas exposições com ele. Essa foi a minha condição, não pus mais condições. Entretanto, a exposição passou só de pintura para tudo o que eu quisesse, todo o tipo de arte. A minha esperança é que – isto é um bocadinho um recado – se continue a fazer destas exposições na Fundação porque são muito precisas, até para mostrar ao país as qualidades da museografia. Hoje nas exposições de arte contemporânea as obras são um bocadinho postas ali… Quando entrou para o novo edifício, tinha-se a sensação de estar a começar algo muito importante? Claro que sim. No dia da abertura pedi para ficar no balcão da receção, gostei imenso de ver as pessoas a entrar. Um edifício daquela categoria, maravilhoso, aqueles jardins, a própria coleção do senhor Gulbenkian, tudo era fantástico. Como é que tínhamos conseguido ter em Portugal uma coleção daquelas! Para o Centro de Arte Moderna, o Serviço das Artes estava a comprar obras, ainda não existia o edifício. A sua filha Catarina Mourão fez um filme sobre a sua família. Chama-se A Toca do Lobo, o título de um dos livros do seu pai, Tomás de Figueiredo. O mais conhecido, teve o prémio Eça de Queirós.
É como se a Catarina fosse à procura da família. O seu pai era para si uma figura enigmática. Continua a ser?
Ainda é um bocadinho, mas acho que me reconciliei um pouco. Era completamente ausente. Ele esteve em casa até aos meus 2 anos. Não me lembro de o meu pai viver lá em permanência.
Não lhe explicavam porque partia?
Ele era notário em Estarreja. Passou por várias terras antes disso. Os meus irmãos viveram em Ponte da Barca na infância e faziam-me uma inveja enorme – porque tinham um cão, porque tinham brincadeiras, imensas aventuras. E viviam com os dois pais, e eu só com a mãe e com a irmã. Com o meu irmão pouco vivi. Foi expulso da Escola de Belas-Artes de Lisboa e mandado para o Porto. Depois entrou para a clandestinidade. Estive anos e anos sem o ver.
Ele era do Partido Comunista. O que sabia sobre a vida do seu irmão?
Não sabia nada. Os homens estavam sempre ausentes, eu vivia no meio de mulheres. Só sabia que ele estava metido em política, que era “do contra” e era perseguido pela polícia. Até que um dia, tinha eu talvez 12 anos, ele foi preso. Visitei-o na prisão. No Aljube não o visitei, só em Caxias e, durante muitos anos, em Peniche.
Lembra-se dessas visitas?
Lembro-me muito bem porque quando me soltava havia sempre um guarda atrás de mim que dizia: “Não pode dizer isso”. Eram conversas descabeladas e sem sentido, porque quando se chegava a qualquer coisa um bocadinho mais profunda interrompiam-nos: “Isso é interdito.” Em Peniche havia um vidro, uma espécie de um balcão, de um lado e outro, onde nos pendurávamos, andávamos com a cabeça de um lado para o outro para tentar evitar os reflexos do vidro, e com um homem em pé, todo armado e composto, sempre a querer intervir.
Tinha muitas interrogações?
Claro que me interrogava. Mas aceitava, era o meu statu quo. Com o meu irmão ainda convivi bastante. As artes plásticas tornaram-se a sua vida profissional. Foi fácil entrar nesse mundo? Foi extremamente fácil, foi natural. Não me via a fazer outras coisas. Teoricamente, estou reformada desde 1 de janeiro de 2017, mas com a exposição estou lá todos os dias.
Não se imagina a ficar em casa?
Dificilmente. Mas apetece-me ter um espaço livre. Extraordinariamente, na última semana tive três convites, um deles por ser da Fundação, e remeti-o à presidente, um para o corpo editorial de uma revista e outro para o “nobel” da medalhística.
“O meu quarto de brinquedos tinha um guarda-fatos com um grande espelho. Como não tinha companheiros, eu fingia que tinha ali alguém comigo” “A minha esperança é que se continue a fazer exposições destas na Fundação porque são muito precisas, até para mostrar as qualidades da museografia” “Acho que me reconciliei um pouco com o meu pai, o escritor Tomás de Figueiredo. Não me lembro de ele viver lá em casa em permanência”