Praljak e o Tribunal Internacional Penal para a antiga Jugoslávia
A25 de maio de 1993, no auge do conflito bósnio, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu o Tribunal Internacional Penal para a antiga Jugoslávia (TPIJ) com o propósito de julgar aqueles que ficaram conhecidos como os perpetradores das maiores atrocidades cometidas em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, estabelecer a verdade e promover a aceitação dos factos e assim fazer justiça, de forma a fomentar a reconciliação e o restabelecimento dos laços quebrados pelo conflito. Surgiu deste modo um (dos) instrumento(s) para o processo de estabilização da região.
Neste mês de dezembro, o TPIJ encerrou as suas portas. Ainda que um mecanismo residual – Mecanismo para os Tribunais Internacionais Penais – assuma funções nos próximos anos de forma a garantir, por exemplo, uma instância de recurso para os casos que não transitaram em julgado.
O tribunal viu, desde cedo, a sua missão dificultada pelo ceticismo com que foi recebido pelos diferentes grupos étnicos da região, que se materializou na resistência em aceitar grande parte das suas decisões. O caso Slobodan Praljak A última decisão proferida pelo tribunal não foi exceção, o passado dia 29 de novembro ficou marcado pelo impressionante suicídio do general bósnio croata Slobodan Praljak – que está já a ser investigado pelas autoridades holandesas – na sala de audiências, instantes depois de ver confirmada a decisão que o havia condenado, em 2013, a 20 anos de prisão por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A sentença confirmou, na senda das decisões anteriores, a existência de um sistema de maus-tratos implementado por Praljak e os restantes cinco arguidos, responsáveis políticos e militares da autoproclamada República Croata “Herceg-bosna”, dentro da Bósnia e Herzegovina. Sistema que incluía a detenção em campos de concentração, tortura, homicídio, imposição de terror e deportação da população civil muçulmana com o objetivo comum de estabelecer a hegemonia croata naquele território. O TPIJ reiterou, ainda, que as forças bósnias croatas atuaram em comparticipação com os líderes croatas, entre eles o então presidente da República Croata, Franco Tudman, reafirmando desta forma a importância do envolvimento deste, e de outros dirigentes croatas, no conflito armado que teve lugar na vizinha Bósnia.
A decisão de Praljak pôr fim à própria vida, precedida da afirmação “Slobodan Praljak não é um criminoso de guerra, eu rejeito com desprezo esta decisão”, materializa o apoteótico epílogo da conturbada relação deste com o Tribunal. Já antes Praljak havia publicado no seu site pessoal um documento, com cerca de 800 páginas, no qual apresenta uma versão alternativa dos eventos que motivaram os conflitos da década de 90 do século passado. Por regra contestando os factos estabelecidos pelo TPIJ.
O impacto do suicídio não só veio desviar os olhares menos atentos do conteúdo da decisão, como encorajou todos aqueles que sempre o viram como um herói a prestarem-lhe o derradeiro tributo. Na capital croata, dias depois de este ter sido considerado culpado pelo Tribunal, teve lugar uma cerimónia de homenagem que contou com a presença de ministros do governo croata, deputados ao parlamento e veteranos de guerra, acompanhados por algumas centenas de apoiantes – que puderam utilizar os autocarros municipais, gratuitamente disponibilizados para quem quisesse comparecer à cerimónia.
Porém, a morte de Praljak e as reações a esta demonstram sobretudo que, apesar de nos últimos 24 anos os países que resultaram da dissolução da antiga Jugoslávia terem encetado verdadeiros esforços para promover o diálogo e a manutenção da paz na região, o Tribunal continua a ser alvo predileto do discurso oportunista de exacerbação das divisões étnicas.
Os atuais líderes políticos não deixaram passar incólume esta oportunidade para rejeitar a decisão do Tribunal. O primeiro-ministro croata, Andrej Plenkovic, qualificou-a de “uma grave injustiça moral contra os arguidos e contra os croatas”, na mesma linha a presidente da República, Kolinda Grabar-Kitarovic, através de um comunicado escrito, acentuou que “o contributo do general Slobodan Praljak para a defesa da Croácia e da Bósnia e Herzegovina da agressão da grande Sérvia e a defesa da sobrevivência do povo croata nas suas localizações históricas durante os conflitos da década de 1990 é de grande importância”. Declarações que motivaram, entretanto, uma reação por parte do atual procurador do TPIJ e do subsequente mecanismo residual, Serge Brammertz, que censurou tanto os dirigentes croatas como os media por não aceitarem as decisões do tribunal.
Num discurso dirigido ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, no passado dia 6 de dezembro, o procurador Brammertz declarou que considerava os resultados do tribunal convincentes. Todavia, reconheceu a ausência de uma verdadeira reconciliação no território da antiga Jugoslávia, notando que “criminosos de guerra condenados continuam a ser vistos por muitos como heróis, enquanto as vítimas e os sobreviventes são ignorados e rejeitados”.
A decisão do passado 29 de novembro confirmou também o envolvimento do general Praljak na destruição da ponte sobre o rio Neretva que percorre a cidade de Mostar, na Bósnia e Herzegovina.
A ponte otomana, construída em 1566, representava a própria ideia da Jugoslávia onde católicos, muçulmanos e ortodoxos viviam juntos em tolerância, até ser destruída pelas forças bósnias croatas em novembro de 1993. Reconstruída em 2004, é hoje Património Mundial da UNESCO. É um símbolo da reconstrução da Bósnia e Herzegovina e da aceitação de um país multiétnico. Apesar disso, a população muçulmana continua a habitar maioritariamente no lado oriental da cidade enquanto no lado ocidental residem principalmente católicos. Com exceção dos turistas que visitam a cidade, são raros os que a atravessam sem um motivo forte. Cada margem glorifica os seus mártires, chora as suas vítimas e alimenta as suas verdades, e tal como o “homem é presa das suas verdades” também a região (especialmente a classe política) parece estar, ainda, cativa das diferentes verdades que impedem um verdadeiro caminho para o diálogo interétnico.
Apesar de Praljak, o TPIJ – que não estará isento de críticas legítimas – deixa uma marca indelével na justiça internacional e na noção de que os crimes perpetrados durante um conflito não são resultado inevitável deste, antes sim responsabilidade dos indivíduos que os cometem. Estabeleceu um precedente incontornável na luta pelo fim da impunidade a que se seguiram, de forma mais notória, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (1994), o Tribunal Especial para a Serra Leoa (2002), tal como outros mecanismos responsáveis por julgar as mais sérias violações de direitos humanos, como por exemplo, o Painel Especial para os Crimes Sérios de Timor-Leste (2000). E finalmente, em 1998, o Tratado de Roma que criou o Tribunal Internacional Penal, operacional desde 2002.
Nas palavras do presidente do TPIJ, Carmel Agius, a “justiça penal internacional será sempre demorada e custosa, mas viver com a alternativa de não fazer nada e ceder à impunidade é pagar um preço muito mais alto”.