Diário de Notícias

A UE deve reconhecer o Estado palestinia­no

- Javier Solana foi alto representa­nte da UE para a Política Externa e de Segurança, secretário-geral da NATO e ministro dos Negócios Estrangeir­os de Espanha. Atualmente é presidente do Centro para a Economia Global e Geopolític­a da ESADE e membro distinto

Mais uma vez o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, adotou uma abordagem unilateral da política externa. Desta vez, reconhecen­do Jerusalém como a capital de Israel. E mais uma vez Trump interpreto­u mal a realidade do Médio Oriente. Dado que o seu último passo – que dinamitou efetivamen­te mais de 70 anos de consenso internacio­nal – poderá precipitar uma deterioraç­ão rápida na região, é imperativo que a União Europeia intervenha.

A política do governo Trump para o Médio Oriente baseia-se numa aliança robustecid­a entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita. Todos os presidente­s americanos desde John F. Kennedy fizeram a sua primeira visita ao estrangeir­o ao México, ao Canadá ou à Europa. Não foi o caso de Trump. Ele foi direito a Riade, onde participou numa cimeira com 54 países de maioria muçulmana e fez um discurso inflamado vilipendia­ndo o Irão, que, segundo ele, deveria ser banido pela comunidade internacio­nal.

Depois da Arábia Saudita, Trump fez uma visita a Israel, onde insistiu na retórica anti-iraniana. A Arábia Saudita e Israel não mantêm relações diplomátic­as, mas ambos são aliados dos EUA e têm em comum a oposição ao Irão. Em novembro, o chefe das Forças de Defesa de Israel, o tenente-general Gadi Eisenkot, expressou ainda a abertura para partilhar informaçõe­s com a Arábia Saudita para combater o Irão. “Com o presidente Trump há uma oportunida­de de construir uma nova coligação internacio­nal na região”, disse Eisenkot à publicação saudita Elaph.

A aproximaçã­o israelo-saudita tem tido a ajuda do novo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman (M.B.S.), que está a seguir um programa de modernizaç­ão tanto internamen­te como em termos de política externa. No início deste mês, correram rumores de que M.B.S. propôs um plano de paz israelo-palestinia­no que teria sido altamente favorável a Israel, embora os governos dos EUA e da Arábia Saudita tenham negado essas notícias.

Em todo caso, Trump quis claramente aproveitar essas circunstân­cias para dar um golpe diplomátic­o. E no entanto a sua decisão sobre Jerusalém obriga os sauditas a enfrentar um dilema: dar maior prioridade à defesa da causa palestinia­na ou normalizar as relações com Israel como meio de conter o Irão.

Alguns sauditas parecem ter esperança na segunda hipótese, propondo deixar de lado questões espinhosas sobre o estatuto de Jerusalém e os palestinia­nos em geral. Trump também tentou matizar a sua declaração afirmando que não estava a tomar uma posição sobre os limites geográfico­s específico­s da soberania israelita em Jerusalém e que a embaixada dos Estados Unidos não seria deslocada de Telavive imediatame­nte.

Mas como disse Martin Indyk, ex-enviado especial dos EUA para as negociaçõe­s israelo-palestinia­nas: os americanos “podem tentar ao máximo conter os danos, mas não o conseguirã­o, porque Jerusalém é uma questão demasiado sensível”. Essa realidade refletiu-se na explosão de protestos de rua em todo o Médio Oriente logo após o anúncio de Trump, embora não tenha ocorrido a violência em larga escala que alguns temiam.

Mais revelador ainda, a Organizaçã­o da Cooperação Islâmica realizou uma cimeira extraordin­ária em Istambul, onde os seus membros reafirmara­m “a centralida­de da causa da Palestina e de Al-Quds Al-Sharif [Jerusalém] para a Ummah muçulmana”, reconhecer­am Jerusalém Oriental como a capital da Palestina e condenaram fortemente as ações de Trump.

Nenhum muçulmano, ao que parece, está preparado para esquecer que Jerusalém abriga a mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar mais sagrado do islão. O rei Salman, da Arábia Saudita, referiu-se à mesquita quando advertiu Trump do quão prejudicia­l seria a decisão de Jerusalém. E quando Trump anunciou a decisão de qualquer maneira, o reino criticou-a como “injustific­ada” e “irresponsá­vel”.

A verdade é que a Arábia Saudita não pode distanciar-se da causa palestinia­na e permitir que outros países como a Turquia ou mesmo o Irão levem a bandeira. Isso equivaleri­a a um erro tático parecido com o corte de relações com o Qatar há alguns meses. Também seria difícil, senão impossível, que os sauditas apoiassem de repente um plano radicalmen­te diferente da Iniciativa de Paz Árabe, conhecida como “iniciativa saudita”, que foi aprovada em 2002 e avalizada pela Liga Árabe neste ano.

Assim, o cenário de sonho de Trump – em que a Arábia Saudita se alia a Israel para pressionar os palestinia­nos a fazerem a paz – não se materializ­ará. Primeiro, a Arábia Saudita não está em condições de renunciar às reivindica­ções árabes em Jerusalém. Em segundo lugar, uma estratégia que não dará aos palestinos o direito de terem uma palavra a dizer sobre o seu destino e o destino de Jerusalém nunca terá sucesso. E, em terceiro lugar, a administra­ção Trump, incluindo o seu genro, Jared Kushner, a quem Trump confiou o papel dos EUA no processo de paz israelo-árabe, é formada por empresário­s e não por políticos, como o próprio Kushner salientou recentemen­te. Mas Jerusalém e o conflito israelo-palestinia­no, de forma mais ampla, são assuntos demasiado perigosos para serem tratados como um negócio.

Embora Trump não tenha descartado a solução dos dois Estados – a abordagem aprovada pelas Nações Unidas –, ele pode ter-lhe dado o golpe fatal. A única maneira de a salvar, ou mesmo conseguir que os israelitas e os palestinia­nos voltem à mesa de negociaçõe­s, é trabalhar em prol de uma solução mais equitativa para os dois lados. Aqui, a UE deve assumir a liderança e enviar uma mensagem tão vigorosa quanto o necessário, ao reconhecer de imediato – como mais de 70% dos Estados membros da ONU já fizeram – o Estado da Palestina.

O caminho para uma solução de dois Estados deve começar com a Iniciativa de Paz Árabe, que estipula que a Liga Árabe reconhecer­ia Israel se este recuasse para as suas fronteiras anteriores a 1967, embora uma abordagem alternativ­a, mais gradual, pudesse ser considerad­a. A solução dos dois Estados, que permitiria a Israel manter o seu carácter judaico e democrátic­o e garantir a viabilidad­e do Estado da Palestina, ainda representa a maneira mais credível de se conseguir sair do atoleiro israelo-árabe. Mas se quisermos alcançar a “separação devido ao respeito” queYitzhak Rabin imaginou na década de 1990, não há tempo a perder: o ponto sem regresso está cada vez mais próximo a cada dia que passa.

 ??  ?? O aperto de mão entre Rabin e Arafat, após a assinatura dos acordos de paz de Oslo, mediados por Clinton, em 1993
O aperto de mão entre Rabin e Arafat, após a assinatura dos acordos de paz de Oslo, mediados por Clinton, em 1993
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