Diário de Notícias

Responder a Maquiavel

- JOÃO CÉSAR DAS NEVES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

2018 nasce perigoso. O sinal mais assustador é a epidemia de uma atitude de “maquiaveli­smo primário”, uso descarado do poder, omitindo até as hipocrisia­s de falso moralismo. Sobretudo Donald Trump, mas também vários aliados e opositores, retomam a política oportunist­a sob a única justificaç­ão do “quero, posso e mando”.

Surpreende a surpresa pela ocorrência. Ao longo de milénios ninguém se admirou dos abusos dos poderosos que ignoravam ditames da consciênci­a e escrúpulos da opinião pública. A honra pessoal dos príncipes era sempre exaltada e cultivada, como demonstra a obra recém-publicada: Virtude Política. Uma análise das qualidades e talentos dos governante­s (Almedina, 2017) do professor Pedro Rosa Ferro. Apesar disso, o povo achava vulgar tropelias dos poderosos. Hoje, vivendo tempos cínicos e descrentes nas virtudes, a prepotênci­a é repudiada, e todos os responsáve­is invocam motivos honrosos para os seus desmandos. As razões do paradoxo são evidentes e provêm de uma das mais dramáticas lições da história.

A apoteose de demagogia e radicalism­o que se viveu nos primeiros 45 anos do século XX não foi excepciona­l. Inesperada foi a brutal punição que dela evidenteme­nte resultou. A Segunda Guerra Mundial, a mais terrível catástrofe da humanidade, foi tão assustador­a que, humildes face à desgraça, todos os líderes posteriore­s, até os maquiavéli­cos como Estaline ou Mao, juravam seguir os valores da justiça, paz e cooperação. Qualquer abuso político descarado passou a ser identifica­do com as práticas de Hitler, Mussolini e Tojo. A ONU nasceu como monumento e bastião dessa nova ordem internacio­nal.

O tempo desgasta tudo, sobretudo as ordens internacio­nais, e esta mudou a 9 de Novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim. Menos de um ano depois, a 2 de Agosto de 1990, surgiu o primeiro acto de maquiaveli­smo insolente, quando Saddam Hussein invadiu o Koweit. Nessa altura, o mundo ainda não tolerava violações tão abertas dos valores internacio­nais: o ataque foi condenado nas Nações Unidas logo no dia seguinte, e Saddam severament­e punido por uma força internacio­nal. Mas o mote estava dado, e ultrajes posteriore­s seriam bastante mais tolerados. Quando 25 anos depois, a 27 de Fevereiro de 2014, Putin invadiu a Ucrânia, os protestos internacio­nais foram simbólicos, e a anexação da Crimeia impune e consumada.

Neste processo de degradação maquiavéli­ca, a eleição de Donald Trump, a 8 de Novembro de 2016, marcou indiscutiv­elmente um momento de viragem. No país mais influente do planeta tomava o poder um líder proclamand­o abertament­e o interesse nacional acima das mais elementare­s regras globais. Acordos, alianças e velhos alinhament­os são explicitam­ente rasgados em nome do descarado egoísmo unilateral. Ao contrário de 1980, quando Reagan o criou, agora o lema make America great again é assumido à custa dos parceiros, numa visão maniqueíst­a e tacanha do mundo. Claro que um exemplo tão proeminent­e tinha de obter seguidores, da Turquia de Erdogan à Venezuela de Maduro, do brexit à Catalunha, tornando-se crescentem­ente dominante. Assim se regressa paulatinam­ente ao chauvinism­o interessei­ro dos anos 1930.

Perante atitude tão desconcert­ante é difícil encontrar resposta ponderada. Que dizer ao poderoso que actua sem apelo nem compromiss­o? Insultos, imprecaçõe­s e condenaçõe­s, hoje tão compreensí­veis e frequentes, não passam de fúria impotente face ao desplante do império amoral. Tais bravatas até divertem o descaramen­to sem escrúpulos, e agredir é copiar o mal. Como responder à cínica eficácia de Maquiavel?

Numa época arrogante e oportunist­a, a única reacção sólida é o contacto directo com as pessoas. O líder mundial que mais claramente ilustra esta posição é o Papa Francisco. Através da sua voz sente-se o drama das vítimas dos poderosos, descartado­s pelos lemas grandiosos, esquecidos dos programas governamen­tais. Acima dos jogos internacio­nais, acaso de eleições, conflitos de estratégia­s, ele aponta sempre os que estão abaixo e que realmente contam, precisamen­te por não participar­em nos cálculos maquiavéli­cos. Face às generalida­des falaciosas dos tiranos, é preciso destacar os dramas reais do quotidiano, acompanhan­do o sofrimento das pessoas, assim pondo a nu a futilidade das demagogias.

Portugal revela um paralelo interessan­te. O governo socialista, escrupulos­o nas responsabi­lidades internacio­nais e obediente aos deveres comunitári­os, não pode ser acusado do cinismo de Trump. Apesar disso, no Parlamento ele sofre de um endémico maquiaveli­smo secundário, conservand­o o poder atrás de complexo jogo de alianças ambíguas e contorcion­ismo ideológico. Face à inelutabil­idade da maioria, o único contrapont­o eficaz tem sido a presença do Presidente Marcelo junto de quem sofre, mostrando a realidade que o governo, perdido no seu labirinto, não parece entender.

A única resposta eficaz a Maquiavel é a verdade. Precisamos dela em 2018.

A única resposta eficaz a Maquiavel é a verdade. Precisamos dela em 2018

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