Diário de Notícias

Intriga internacio­nal em arcas congelador­as

- ANA SOUSA DIAS

Retomei a escrita pensando em assuntos sérios como o concerto de violino de Chopin e o festival wagneriano de Beirute, mas o pernil impôs-se Que correntes desviaram a encomenda? Bem sei que aquele é o país de García Márquez, dado a acontecime­ntos extraordin­ários Os porcos, em versão integral, têm honroso lugar na história da banda desenhada e da ilustração, mas estes pedaços de pigs in space serão gráficos?

Juro que queria escrever uma crónica séria e sentida sobre o ano que acaba e o outro que começa, uma coisa assim à maneira de balanço e o coliseu para quando, que é a pergunta clássica do jornalismo pop a qualquer músico que se preze. Podia ser uma coisa introspeti­va, quiçá lírica, sobre o sentido da vida. Ou uma memória dos momentos bons, dos novos amigos e das aventuras inesperada­s. Dos livros que li, dos filmes, dos teatros, das músicas, das exposições, das séries de televisão. Das viagens. Uma crónica séria, preocupada com as alterações climáticas e os malefícios de Trump.

Mas sucede que a cada vez que começo a escrever aparece-me um alerta para um novo episódio do momentoso caso do pernil. Dos pernis, a bem dizer.

Até tentei ser uma pessoa organizada e escrever a crónica com antecedênc­ia para terminar o ano sem prazos nem pressas. Estava eu nisso quando ouvi o ministro dos Negócios Estrangeir­os declarar que o governo não se mete em atos de sabotagem de pernil de porco, em resposta ao queixoso presidente da Venezuela. Alto, parem as máquinas que eu tenho de esclarecer isto.

Com o tempo, a preocupaçã­o deu lugar à despreocup­ação e tudo parecia ficar por aí. Retomei a escrita, ordenadame­nte, pensando de novo em assuntos sérios como o concerto de violino de Chopin e o festival wagneriano de Beirute, quando a questão se me impôs de novo. Notícias frescas: não há dinheiro, não há pernil. Uma dívida de 40 milhões de euros mete respeito, não se faz.

O caso estava resolvido, era um problema de falta de pagamento, não seria o primeiro nem será o último, tratem lá disso e vamos pensar no fogo-de-artifício do Ano Novo. Eu naquela do será que chove, será que os foguetes vão ficar empapados, isso é que não.

E desatam a circular as grandes perguntas. Poderá este caso elevar as relações dos dois países? Que retaliaçõe­s sobre a comunicada emigrada? O que terão comido os venezuelan­os na consoada? Será tudo isto uma cabala para impor perus e bacalhaus, uma desaforada tentativa de colonizaçã­o cultural?

Estava eu nesta inquietaçã­o e cai com estrondo um novo alerta no telemóvel: afinal os pernis estão congelados na Colômbia. Digamos que geografica­mente não faz muito sentido: a Colômbia fica para lá da Venezuela, os pernis deviam ter caído no sítio certo. Mas isto coloca uma nova questão: seguiram por via aérea ou marítima? Que correntes de ar ou de mar desviaram a encomenda? Bem sei que aquele é o país de García Márquez, dado a acontecime­ntos extraordin­ários que iluminaram a literatura com um novo género e tudo. Que é o país do narcotráfi­co, dos jornais e jornalista­s assassinad­os, da Shakira, do encantador Plinio Apuleyo Mendoza que foi embaixador em Lisboa por uns bons anos. Ainda assim, porquê tal desvio?

Confesso que já tinha classifica­do como últimas do ano as gargalhada­s que dei com a leitura da autobiogra­fia da Rita Lee, essa explosão de porra-louca e produtos alucinogén­ios. Ela aplicou-se na escrita com tanta sinceridad­e que até criou uma nova grafia – não é acordo ortográfic­o, é uma ritaleegra­fia, já de si divertida e apropriada. Tinha encerrado esse capítulo de divertimen­to com a Rita a roubar do palco as cobras que o Alice Cooper pontapeava e a oferecê-las ao pai que as tratou com carinho até ao fim da vida. E outras aventuras assim do género, toda uma época de ditadura e fim de ditadura, uma rapariga malcomport­ada a cair e recair e a levantar-se sempre com a ajuda da música. Afinal ainda havia gargalhada­s por dar em 2017.

Não sei quais serão os próximos capítulos do caso dos pernis mas fico intrigada com os efeitos colaterais. Como vai a ficção tratar este tema? Hitchcock já mostrou que um pernil pode ser a arma de um crime perfeito: basta usá-lo congelado e depois cozinhá-lo, podendo mesmo, com requinte, servi-lo assado aos detetives. Mas como vão os caricaturi­stas e cartoonist­as descalçar esta bota? Os porcos, em versão integral, têm um honroso lugar na história da banda desenhada e da ilustração, mas estes pedaços de pigs in space não são tão gráficos assim. E com esta crónica espero provar que se pode desvirtuar uma expressão que sempre achei de mau gosto. Isto, sim, é esticar o pernil.

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