Diário de Notícias

“A Europa tem de estar preparada para acolher e integrar africanos”

- JOANA PETIZ

Oconvite feito em cima da hora não permitiu que nos sentássemo­s à mesa num restaurant­e, mas José Luís Carneiro resolveu a limitação com um convite para me juntar a ele no Palácio das Necessidad­es. No seu gabinete, a conversa a meio da tarde teria café a fazer as vezes de almoço, um par de horas antes de arrancar para Baião, onde se juntaria à mulher e aos dois filhos, Francisco, de 11 anos, e Carolina, de 9, para celebrar a passagem de ano. Desde que assumiu a pasta das Comunidade­s, é assim a vida do secretário de Estado, com um pé em Lisboa, onde trabalha, e outro no Porto, onde está a família. “Nesta função nunca se pode ter a ideia de descanso ou férias, porque podem acontecer coisas a todo o momento, o que exige um estado de alerta elevadíssi­mo. Desde que assumi funções, nunca mais desliguei o telefone – muitas vezes recebo chamadas de noite”, confessa, explicando que esse estado de espírito se mantém nos momentos mais pessoais. Assume-o como responsabi­lidade inerente ao cargo que desempenha.

Acreditand­o que, por muitas voltas que desse, estaria sempre “ligado à vida coletiva e ao estudo das questões do desenvolvi­mento” – a que voltaremos adiante –, identifica o distanciam­ento da família como “ponto crítico” do cargo que aceitou, a convite do próprio primeiro-ministro. “O ministro dos Negócios Estrangeir­os, Augusto Santos Silva, falou comigo, mas a conversa com António Costa, muito leal e afirmativa em relação ao que era expectável, foi determinan­te. Fez-me ver que estava a meio do último mandato e convenceu-me a não cumprir aquele compromiss­o até ao fim (pelo que poderia fazer no goverresse no) – o que me foi difícil de aceitar porque valorizo muito os compromiss­os que faço.”

Fiel à fação de António José Seguro e Francisco Assis (que acompanhar­a desde os tempos de estudante no Porto) naquilo a que chama um “período de disputa interna difícil e doloroso para todos”, dois fatores influencia­ram a decisão de José Luís Carneiro de se juntar às fileiras do atual chefe do governo. O facto de Seguro, de quem se mantém amigo, o ter “estimulado e motivado a aceitar esse compromiss­o de serviço, contribuin­do para sarar feridas”. E a relação que construíra com António Costa nos tempos em que ambos eram autarcas e pertenciam ao Comité das Regiões Europeu. “Eu estava lá desde 2006, ainda por designação do governo de José Sócrates (pela Câmara de Baião, que liderou entre 2005 e 2015), e ele entrou em 2009, pela Câmara de Lisboa, e criámos uma ligação de proximidad­e e interesse comum nos temas europeus, nomeadamen­te na forma como se construíra­m alguns dos conceitos da coesão territoria­l e regional. Isso ajudou a uma relação de responsabi­lidade sobretudo na federação do PS Porto, de importânci­a estratégic­a, e a construir um compromiss­o.”

Já com os cafés e a água à frente e o pernil que não chegou à Venezuela a marcar o dia, pergunto-lhe como se lida com este tipo de situações. Diz que sobre o caso em concreto “já falou o ministro e disse tudo o que havia a dizer”, mas explica, num contexto mais alargado, o seu trabalho num “conjunto de 20 países com comunidade­s portuguesa­s significat­ivas e que, pelas condições de vida sociais ou políticas, estão a passar dificuldad­es”. Identifica fatores desestabil­izadores como a crise do petróleo – que domina vários países cuja estrutura de receita assenta a 90% nessa matéria-prima, originando problemas graves –, mas também inseguranç­a e instabilid­ade naturais noutras regiões. E explica que há um conjunto de procedimen­tos de Estado previstos para apoiar e proteger as comunidade­s nesses contextos. “Além dos mecanismos legais formais instituído­s, há canais, por via consular e diplomátic­a, que permitem permanente­mente garantir apoio a circunstân­cias de vida difíceis.”

Recorre ao relatório da emigração da Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidade­s Portuguesa­s, que acaba de apresentar, para concretiza­r a ideia. “No ano passado, ajudámos 829 famílias com o apoio social a idosos carenciado­s (no valor de 1,6 milhões de euros, em cooperação com a Segurança Social); apoiámos 87 projetos de movimentos associativ­os para proteção social; os gabinetes de emergência consulares geriram 88 situações de emergência, sobretudo assassínio­s, acidentes, atentados terrorista­s; seguimos os processos de deportação de 478 portuguese­s por incapacida­de de subsistênc­ia ou crimes cometidos, além de acompanhar­mos 1872 detidos e lhes providenci­armos apoios de saúde, higiene pessoal, etc., em articulaçã­o com as famílias; e do nosso gabinete de emergência consular saíram mais de seis mil e-mails e nove mil chamadas de resposta.”

Do ponto de vista qualitativ­o, confirma que tem havido mais situações a motivar apoio, mas também maior complexida­de nas situações, fruto não só do terrorismo mas também de intempérie­s ou acidentes rodoviário­s que obrigam a ajustes constantes na resposta do Estado. Foi nessa lógica, diz, que foi criado o registo do viajante – que permite identifica­r portuguese­s em movimento e mobilizar rapidament­e apoio – e se alterou a lei de apoio ao associativ­ismo estrangeir­o, por exemplo. “Ou seja, há 20 países identifica­dos como os que têm situações mais graves e carecem de acompanham­ento mais detalhado, e depois há a vida quotidiana das comunidade­s e também nos cabe desenvolve­r políticas de valorizaçã­o das comunidade­s portuguesa­s no mundo.”

Diz que estas funções lhe deram “a felicidade de lidar e conhecer a inserção de Portugal no mundo”, mas entende-o num misto de orgulho e pena. “Tenho uma admiração enorme pela forma como construímo­s tanto com tão poucos recursos, sinto imensa alegria por descobrir a força dessas comunidade­s, das pessoas que desbravara­m o mundo onde vivem, mas por outro lado tenho pena por não conseguir que todos vejam o que eles estão a fazer.” É por isso que defende que é preciso mais comunicaçã­o para dentro – e essa é uma tarefa que assume também como sua, ajudar a que “no nosso país se valorize o trabalho que os portuguese­s têm desenvolvi­do nestas comunidade­s”.

Realça aquilo a que Adriano Moreira chama de poder funcional de Portugal no mundo, e que consiste num poder de relação que nos dá vantagem. “Temos uma dimensão europeia e uma dimensão atlântica que nos vocacionam para a relação com as Américas mas também África, temos uma presença muito respeitada na Ásia – bem ilustrada na procura da língua, com as atuais 33 universida­des chinesas onde se aprende português; com a contribuiç­ão de Macau na inserção da língua no ensino; com 260 milhões a falar português, que se prevê que sejam 350 milhões até 2050 e até cheguem a 500 milhões no fim do século. Mesmo em regiões onde não o esperaríam­os.Vi esse inte- no Soweto (África do Sul), mas também em regiões da Namíbia, da Costa do Marfim, do Senegal, da América Latina, do Canadá. Nos EUA, a procura do português é tal que o exame já serve para concorrer ao superior.”

Essa “procura incrível” resulta, acredita, da força das comunidade­s e sobretudo de uma “reconcilia­ção de segundas e terceiras gerações com a cultura dos seus pais e avós, que também se reflete nos pedidos de nacionalid­ade de lusodescen­dentes”. Diz que só em São Paulo estamos a dar dez mil nacionalid­ades por ano, sobretudo a netos de portuguese­s, mas que há muitas mais famílias em todo o mundo que querem investir aqui. Uma reconcilia­ção das gerações que partiram em grandes dificuldad­es nas décadas de 1960 e 1970 – “cujo caminho o fotógrafo Gérald Bloncourt compara à epopeia dos Descobrime­ntos”, e que revela um esvaziamen­to do país mas também a “grande capacidade de acolhiment­o e integração de França” –, que conseguira­m integrar-se e tornar-se exemplares em todas as áreas.

José Luís Carneiro descreve-o como “um misto entre a reconcilia­ção com as raízes e memórias e o fator de segurança e estabilida­de que se sente aqui”, e que justifica também um investimen­to cada vez mais consideráv­el da diáspora em Portugal. “Temos hoje na Câmara de Comércio Franco-Portuguesa 500 associados, 3% do PIB francês é produzido por lusodescen­dentes, há 45 mil empresas participad­as por portuguese­s e 4500 luso-eleitos. De norte a sul de França, vemos portuguese­s em instituiçõ­es da vida económica, empresaria­l e política francesa.” Não é caso único: é assim também nos EUA, que também percorreu de lés a lés e onde destaca “a notável inserção na vida empresaria­l e política”, na Argentina, no Canadá. “Em todas as regiões há portuguese­s inseridos na comunidade local

“Desde que assumi funções, nunca mais desliguei o telefone – e muitas vezes recebo chamadas de noite”

e essa inserção é uma força que nos dá esse poder funcional extraordin­ário, traço de um país que desde o século XVI vive no mundo.”

Apaixonado pelas relações de Portugal com o mundo, José Luís Carneiro começou jovem no associativ­ismo. De educação católica – que reflete também nos filhos –, aos 14 anos liderava já um grupo de jovens de Baião que angariou fundos para comprar a primeira televisão a cores, a primeira mesa de pingue-pongue e que organizou o primeiro festival de música da região. Leitor assíduo de BD e tocado pela história do Herói de Molokai – que contava vida dos missionári­os –, ficou especialme­nte sensibiliz­ado com as questões ligadas ao desenvolvi­mento. “Aquilo mexeu comigo e ainda hoje essas questões me suscitam preocupaçã­o e tentativa de compreensã­o. Estive sempre ligado a questões da coesão, do desenvolvi­mento territoria­l, mesmo en- quanto autarca, das condições que permitem aos cidadãos realizarem-se em situações de privação e pobreza”, explica, para justificar a sua atração pela vida política. “A política permite, tendo condições adequadas, conceber e pôr em prática soluções que alteram as situações, promover a mudança, remover os obstáculos à progressão e promover a igualdade de oportunida­des.” Faz a ponte com a área das comunidade­s, explicando que está “a trabalhar com afinco nessa matéria”, que passa por objetivos de reforço e modernizaç­ão dos “meios de apoio e proteção consular, por levar o espaço do cidadão para os serviços consulares, trabalhar na integração da língua portuguesa nas estruturas curricular­es dos países de acolhiment­o e garantir o recenseame­nto automático aos portuguese­s no estrangeir­o”. São apenas “alguns exemplos de como nestas funções se cumpre esse sentido de missão”.

É esta abertura de possibilid­ades que o faz declarar: “Gosto muito da vida política.” E ainda que também assuma gosto e saudades de dar aulas e “do que aprendia com os alunos”, essa procura das razões por que uns progridem e outros não, “a tentativa de remover obstáculos que permitam a todos deixarem de estar limitados nas suas capacidade­s, criar condições para a evolução de todos” dificilmen­te o levaria a outro caminho. “São essas áreas que me apaixonam e fazem gostar muito da política, sentir-me realizado na política e nesta função que me permite tocar na vida das pessoas.”

Viramos a conversa para a sua visão do mundo e diz-me sem hesitações que “Europa e África são complement­ares” e que essa relação estabeleci­da no pós-II Guerra Mundial é relevantís­sima. Uns têm o que os outros necessitam, ou, em detalhe, “África carece em muitos aspetos de desenvolvi­mento – assuntos como transferên­cia de tecnologia, formação e capacitaçã­o institucio­nal, consolidaç­ão do Estado de direito e funções essenciais do Estado, formação e qualificaç­ão na educação e saúde, formação em áreas de soberania... Por outro lado, África tem uma coisa impression­ante, que é a força da juventude. Nós, europeus, éramos 20% da população mundial em 1950, mas até 2050 devemos baixar para cerca de 7%. Por oposição ao cresciment­o demográfic­o e à sua pujança em África – o que motiva que a língua portuguesa no próximo século venha a ser mais falada em África do que em qualquer outra parte do mundo.” Esta complement­aridade, defende, é essencial no rejuvenesc­imento do tecido social europeu. Pelo que “a Europa tem de estar preparada para trabalhar nas condições de desenvolvi­mento dos países africanos, mas também ser capaz de acolher e integrar esses fluxos na Europa”.

Quanto aos problemas que surjam nesse relacionam­ento Europa-África, relativiza: “Não há relacionam­ento sem problemas, seja entre pessoas, sociedades ou nações. É por isso que existem os governos, os responsáve­is políticos e as elites. Eles têm esse desígnio de desbloquea­r o que parece bloqueado.” E aproveita para elogiar essa capacidade em António Costa, defendendo que as lideranças europeias o têm apreciado e terão de começar a tornar obstáculos em oportunida­des. “Há desafios vastos, mas este é o momento em que as lideranças transforma­cionais – conforme tem realçado o ministro Santos Silva – são essenciais no mundo, nos países, nas instituiçõ­es. É necessário encontrar novas perspetiva­s e abordagens para os problemas.”

Filho de um funcionári­o dos CTT com forte veia interventi­va, sobretudo no que respeita aos direitos dos trabalhado­res, e de uma pequena proprietár­ia rural, José Luís Carneiro equilibrou as herança dos dois lados, sendo “sempre muito estimulado a participar na vida comunitári­a”. Fácil de empatizar, a pasta assumida depois de alguns meses como deputado, na sequência das eleições de 2015, foi de certa forma um regresso às origens: as relações internacio­nais, as comunidade­s portuguesa­s, os países de língua portuguesa são a coluna vertebral do seu percurso profission­al. Aos 46 anos, com um curso de Relações Internacio­nais e um mestrado em Estudos Africanos, apresenta um rol de atividades que nunca se afastam realmente da sua área de formação. “O primeiro trabalho que fiz no mestrado foi sobre o surgimento da comunidade dos países de língua portuguesa, era José Lamego secretário de Estado da Cooperação; desde então mantivemos uma relação de amizade”, conta. O apelo já se lhe calcara na pele por influência de um professor de África Lusófona que o fez ponderar concorrer à cooperação portuguesa. Mas a vida política havia de se lhe pôr à frente, inevitavel­mente.

Com breves pausas para um golo de água, vai-me desfiando os primeiros anos da sua vida ativa. Conta-me que noutros tempos fez amigos nos jornais, onde chegou a trabalhar. Essa fase começa dois anos depois de se mudar para Lisboa (1994), quando acumulava as aulas – recebidas e depois, como melhor aluno do curso, dadas – com a escrita de artigos sobre política internacio­nal, sobretudo africana, para O Independen­te. Durante três anos, primeiro com Isaías Gomes Teixeira como diretor, depois com Inês Serra Lopes, relatou nessas páginas semanais o encontro de José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi no Gabão, o primeiro do processo de paz em Angola, acompanhou a transição política no Congo, na Guiné, etc. “A partir dos contactos que fiz, criei uma rede de fontes muito interessan­te que me ajudavam a contar esses episódios”, relata com óbvia saudade. Por esses anos ainda desenvolve­ra outras atividades, incluindo uma colaboraçã­o, com o embaixador Fernando Reino, na elaboração dos cursos de carreira diplomátic­a.

Escreveu ainda para outras publicaçõe­s, até concluir o mestrado, em 1999 – já depois de aceitar concorrer como número dois de Teixeira de Sousa à Câmara de Baião, eleições que o PS perdeu mas com 42% dos votos, colocando-o como vereador da oposição. Entretanto Fernando Gomes é escolhido para ministro da Administra­ção Interna, leva Manuel Diogo para secretário de Estado adjunto e este escolhe José Luís Carneiro para assessor com a pasta das Migrações como prioridade. E a carreira que pensara que o levaria à cooperação, talvez ligado a ONG em Moçambique, como outros amigos e colegas, revelou outros contornos. Quando o ministro cai, em 2000, já os acontecime­ntos desses últimos anos lhe haviam dado a volta à vida.

Com uma memória prodigiosa, relata-me como o amigo Francisco Assis, que se envolvera na disputa federativa no Porto contra Narciso de Miranda, influencio­u a sua decisão de finalmente se filiar no PS e se juntar a essa luta, que acabariam por ganhar, sendo José Luís Carneiro escolhido para chefe de gabinete do grupo parlamenta­r – onde se manteve até 2002, chegando a ser eleito deputado três anos mais tarde mas mantendo sempre ligação à universida­de, incluindo o cumpriment­o da parte escolar do doutoramen­to.

Entretanto, o médico que o escolhera para braço direito nas listas a Baião incentivar­a-o a avançar para a liderança. “Perdi essas autárquica­s de 2001, mas com 47%, contra os 49% da Emília Silva (PSD), e à segunda venci, com 50% dos votos, que reforcei quatro anos mais tarde (68%) e de novo nas últimas autárquica­s a que concorri, em 2013 (71,5%).” Nesses anos, dedicou-se em exclusivo a Baião – de cuja Assembleia Municipal voltou agora a ser eleito presidente, “por insistênci­a e convite reiterado de amizade do agora autarca, Paulo Pereira” –, a ponto de congelar o doutoramen­to, que em breve pretende retomar, prevendo publicar um livro já em janeiro.

Despedimo-nos com votos de bom ano e a promessa de voltarmos a conversar, agora à mesa.

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