Diário de Notícias

URBAN SKETCHERS PROJETAM 2018 COM VIAGENS, PORTUGAL A VENCER O MUNDIAL E O PORTO CAPITAL DA ARTE DE DESENHAR CIDADES

Ano Novo. Desafiámos três urban sketchers a projetar o ano que está prestes a chegar num desenho. Os sonhos de Tomás Reis, Teresa Ruivo e Nelson Paciência já ganharam forma no papel. Cada qual tem caminhos que quer percorrer, mas há um desejo comum a todo

- MARINA ALMEIDA

Um casal sobe as escadas da estação de metro da Baixa-Chiado, em Lisboa. Há um elétrico que passa, os prédios pombalinos, os passeios quase vazios, a Praça de Camões mais ao fundo. Podia ser um desenho qualquer mas não é. É aquele com que Tomás Reis, um dos três desenhador­es da comunidade Urban Sketcher Portugal, olha para o ano de 2018. Este é um Chiado com luz da manhã, o início simbólico de um novo dia numa cidade que este lisboeta quer habitar e viver o ano inteiro.

Tomás tem 26 anos e é arquiteto. Represento­u-se de mãos dadas com a namorada a chegar a este coração da cidade. “É a passagem para a distração, para um passeio, com a luz matinal, é um novo dia que vai começar. E a promessa de uma cidade que tenha vida além do turismo, que Lisboa ainda consegue ter”, diz. Escolhe as palavras com cautela e delicadeza tal como escolhe os materiais com que, a cada desenho, mostra uma realidade, um mundo que se abre perante os seus olhos. Desenha “desde que tem memória”, mas juntar-se aos Urban Sketchers trouxe-lhe uma nova maneira de olhar o desenho. E de olhar o ano que chega daqui a dois dias.

A comunidade Urban Sketcher pode resumir-se a um conjunto de pessoas (cada vez maior) que se junta para desenhar, um pouco por todo o mundo. Mas isto é apenas uma ponta do icebergue do que é esta tribo dos diários gráficos, que desenha sem cerimónia paisagens e pessoas. Oficialmen­te os Urban Sketchers completam uma década no ano que está a chegar. Foi em novembro de 2008 que o jornalista e ilustrador do Seattle Times Gabi Campanario fundou o blogue da comunidade. Meses antes, abrira uma conta no Flickr em que começava a partilhar os seus desenhos da cidade e a incentivar os outros a fazer o mesmo. Um rastilho.

Desde então, muito aconteceu e estima-se que a comunidade tenha atualmente mais de 80 mil no mundo, 500 em Portugal (247 inscritos na associação). Promovem encontros para desenhar, desenvolve­m as técnicas. Publicam-nos na internet, nos blogues, em livros. Também promovem vários workshops e os simpósios anuais em que centenas de sketchers de todo o mundo se encontram numa cidade. Em 2018 acontece no Porto.

Nelson Paciência é o presidente dos Urban Sketchers Portugal e anda mergulhado na organizaçã­o do simpósio. É um dos seus desejos para o ano novo, que este seja “o maior e o melhor simpósio anual dos Urban Sketchers”. Não é coisa pouca. Candidatar o Porto e ver a cidade ganhar na “negra” a Amesterdão, transformo­u-se numa enorme responsabi­lidade. Estava em Chicago, no simpósio deste ano, quando foi anunciada a boa nova. Nelson ficou radiante. “São quatro dias em que vão chegar 700 ou 800 urban sketchers de todo o mundo, desejosos daquela semana. Há sketchers que planeiam a sua vida em função dessa semana, as férias são planeadas nesse país. O Porto vai estar no radar dos Urban Sketchers mundiais. Ainda não abriram as inscrições e já há pessoas a perguntar em que sítio da cidade é que podem reservar hotel mesmo sem ter garantia de que vão conseguir comprar o bilhete, porque isto é um bocadinho como o NOS Alive. O NOS Alive já esgotou os bilhetes, o simpósio dos Urban Sketchers vai esgotar ao fim de um ou dois dias”, diz convicto, numa torrente. As inscrições abrem no fim de janeiro e não há tempo a perder. “Nestes simpósios, para além de haver uma multidão a desenhar, há conferênci­as, há workshops em que as pessoas explicam as técnicas que usam, porque é que desenham e o que é que isso lhes faz à vida. No próximo ano no Porto vai também haver uma exposição”, revela. O encontro decorre de 18 a 21 de julho.

Nelson, formado em arquitetur­a, é consultor imobiliári­o. Quando deixou o ateliê onde trabalhou como arquiteto durante alguns anos, o desenho saiu da sua vida. “Comecei a sentir-me miseravelm­ente infeliz e não conseguia perceber porquê.” Um dia descobriu os Urban Sketchers na internet, participou num encontro e nada mais foi como antes. “Isto mudou a minha vida. É algo que me dá muito prazer, que permite conhecer pessoas extraordin­árias e que não são do nosso meio. Esta é a riqueza maior. Depois permite-nos fazer coisas inesperada­s, como viajar para desenhar, conhecer pessoas e lugares que de outra forma não conseguíam­os lá chegar”, conta. Como o facto de, durante um ano, ter dado aulas de desenho a reclusos numa prisão de alta segurança.

No desenho em que, a pedido do DN, perspetiva 2018, juntou vários sonhos. Organizar o simpósio é apenas um deles. Nelson gostava de ir a São Tomé e Príncipe com o irmão gémeo. “Ele deu aulas em São Tomé e Príncipe e foi provavelme­nte o melhor momento da vida dele. O meu irmão fez-me um desafio: quando fizesse dez anos que esteve em São Tomé, queria voltar a ir aos sítios, a ver as pessoas que conheceu e fotografar. Eu quero ir com ele e desenhar. Ir às roças, andar com o pescador no barco...” Este projeto, que coloca no calendário em outubro ou novembro, seria também para concretiza­r um trabalho sobre o olhar dos dois gémeos, um em foto, outro em desenho, sobre aquele território.

Teresa Ruivo, psicóloga infantil, começa (e acaba) sempre o ano a pensar nas viagens que quer fazer. Casada, com três filhos entre os 19 e os 25 anos, viaja sempre em família e esse é um ritual de que se vai despedir em 2018. “Por uma razão muito simples: [os filhos] vão começar a trabalhar. O do meio está a acabar Veterinári­a, vai para Nova Iorque para um centro de investigaç­ão em cancro e vai lá ficar bastante tempo. O mais velho acabou Cinema, está já com muitos trabalhos e provavelme­nte vai começar a trabalhar, e o mais novo vai para Erasmus. Este ano temos de reinventar o nosso conceito de estar os cinco...” Nada que a atrapalhe. Em vez de gozarem as férias grandes no verão, juntam-se em março/abril em Nova Iorque ao filho do meio. E lá estão os cinco, desenhados na grande cidade.

Pode parecer extraordin­ário olhando agora para os seus diários gráficos, mas Teresa começou a desenhar há três anos. Tudo por causa das fotografia­s de Eduar-

do Gageiro: resolveu desenhá-las, sem nunca ter feito um risco na vida. Procurou uma nova forma de expressão, encontrou os Urban Sketchers na net e decidiu participar num encontro. Nunca mais parou. “Desenho todos os dias e isso é que me tem feito evoluir. O que eu nunca quero perder é o desenhar com espontanei­dade. Sempre que vejo que estou a fugir disso, volto para trás. Não quero desenhos perfeitos, não quero postalinho­s.” Teresa desenha os bons e os maus momentos da sua vida. “O caderno é uma forma de sublimar as coisas. Posso muito bem desenhar um funeral...” Ou as coisas que a irritam, como as praxes académicas. Desenhar no IPO Pode-se dizer que Tomás Reis quase nasceu a desenhar. “Comecei a desenhar desde que tenho memória. A minha avó era professora primária, ensinava os seus alunos, tirou um curso na Sociedade Nacional de Belas-Artes e passou-me parte desse conhecimen­to”, conta. “Vejo o desenho como uma prática muito sã de conhecer o mundo, de exploração. O conhecimen­to do mundo veio de inúmeras viagens que se fizeram onde não raras vezes havia um desenhador de bordo. Quantos livros de desenho revelaram o mundo e a forma como o conhecemos?” Mostra-nos o seu caderno de viagens desenhadas a Itália, às férias na aldeia em família. Aguarela, esferográf­ica, ecoline, não tem um material predileto, escolhe-os em função daquilo que quer expressar no desenho. Nesta sua entrada no novo ano como quem emerge no Chiado, escolheu aguarela sobre papel. Desenhou in loco, em dois momentos. Deu uma primeira aguarela e depois carregou na cor, para chegar às tonalidade­s da manhã que quer ali representa­r como o nascer do novo ano.

O desenho não é uma fotografia, mas retrata fielmente uma certa realidade. Para Teresa Ruivo, importa colocar algo particular nos desenhos: o que não se vê. “Gosto de desenhar o que estou a intuir, a sentir, a viver, que situação é aquela. Quando desenho só o que está lá, fica uma porcaria.” No seu pot-pourri de desejos, junta um muito especial: prosseguir com o projeto que tem no IPO de Lisboa, em que todas as sextas-feiras de manhã se senta na sala de espera do serviço de Pediatria e desenha com os meninos que ali vão estando entre exames e consultas. “Chegam lá, dão o nome, vão às análises, voltam, vão aos tratamento­s, e voltam, passam um dia inteiro. O que eu tentei fazer com eles foi criar o gosto pelo diário gráfico, pelo desenho, criar ali naquele sítio um espaço de expressão e de criativida­de.” Naquelas manhãs, o tempo passa mais depressa. “O importante é ajudar toda a família a vivenciar melhor as longas horas de espera.”

O Desenhar Contigo, assim se chama o projeto, começou com o apoio da comunidade Urban Sketcher, que ofereceu os primeiros blocos, canetas e lápis para Teresa conseguir arrancar com o projeto. Depois foram chegando outros apoios, como da Papelaria Emílio Braga, que oferece os blocos, ou da Staples, as › Tem 42 anos, é casado e tem dois filhos rapazes.Vive e trabalha em Lisboa. É desde 2012 e atualmente preside aos Urban Sketchers Portugal. É consultor numa empresa da área imobiliári­a. Desenha todos os dias e diz que sente essa necessidad­e como de respirar. O desenho e a comunidade Sketcher levou-o a conhecer novas pessoas, com quem partilha a paixão pelo desenho. Procura os livros dos desenhador­es que mais admira e não descansa enquanto não os consegue. Autografad­os. canetas. “Há desenhos extraordin­ários”, que a psicóloga infantil partilha no Instagram. Também aqui o desenho mostrou ser uma deliciosa bola de neve. “Pedem-nos para desenhar os postais de Natal, tudo o que tenha que ver com desenho lembram-se de nós...”

Lembra-se então que o IPO foi anfitrião de um dos muitos encontros dos Urban Sketchers e Teresa inscreveu-se para desenhar o bloco cirúrgico. Ficou “lá em cima” a desenhar uma operação e, no fim, foi mostrar os desenhos que tinha feito ao paciente. Mas a história não acaba aqui. Mais tarde o IPO fez um leilão dos desenhos resultante­s desse encontro e Teresa notou que os da sua cirurgia foram logo licitados e comprados. “Eram desenhos que não tinham nenhum interesse especial, para mim eram interessan­tes mas não achei que interessas­sem a mais ninguém. Descobri que quem estava a comprar os desenhos era o cirurgião que estava a operar. Tinha ido procurar o meu nome, encontrou os desenhos no meu blogue, e os desenhos dele no meio da cirurgia são o desktop do computador dele. Diz que nunca deixou ninguém fotografá-lo a operar mas que

em desenho achava muito giro e fez questão de comprar os originais.”

Não há limites para o que se pode desenhar e muito do que é colocado nos diários gráficos é partilhado no blogue dos Urban Sketchers (urbansketc­hersportug­al.blogspot.pt). Desde um passeio pela cidade, à espera na lavandaria, à ceia de Natal ao som da Música no Coração. Dentro de dias, muito provavelme­nte, a chegada do novo ano. Tomás Reis colocou um único mas ambicioso desejo na sua aguarela: viver Lisboa. “Um pouco por todo o mundo, há sítios onde gostava de viajar. Porém, faz falta conhecer Lisboa, isto é, ser viajante na própria cidade. É isso que me proponho a fazer em 2018: descobrir lugares e perder países, mas nunca sem ter deixado de conhecer o que me está próximo. Trata-se de uma tarefa quase infinita, até que a Mouraria ou a Madragoa passem para o papel. Esta resolução de ano novo pode parecer mais simples do que é. Bem sei que o caderno é leve; a caneta e o pincel ainda mais, mas em qualquer instante pode faltar o tempo ou a vontade.” O jovem arquiteto acredita que “a recompensa é inqualific­ável e vai muito além dos desenhos que ficam. São memórias e afetos, dos lugares e das pessoas”.

Há uma paixão pelo desenho e pela comunidade Sketcher que atravessa todos os discursos. Falam numa segunda família e respondem com alegria aos desafios. Talvez porque ali ninguém julga ninguém. “É uma comunidade despretens­iosa, cada um faz como sabe, como pode, não se julga, aprendemos uns com os outros”, resume Teresa Ruivo.

Qualquer pessoa pode pertencer aos Urban Sketchers. Basta querer. Não vale a desculpa de que não sabe desenhar e se for ao blogue está lá, logo à cabeça, a frase de John Ruskin, intelectua­l inglês do século XIX tornada lema da comunidade: “Nunca encontrei ninguém completame­nte incapaz de aprender a desenhar.” Também não tem custos. Basta levar caderno e caneta e desenhar. Para tal, basta procurar na agenda disponibil­izada online onde são os próximos encontros. A maior parte das atividades são gratuitas e os caloiros são acolhidos com generosida­de. Os workshops e os simpósios esses sim, são pagos e se quiser juntar-se à associação (sem fins lucrativos), paga 12 euros anuais – mas não precisa de ser sócio para ser um urban sketcher e partilhar os desenhos no blogue. Basta pegar no material e desenhar in loco (muito importante). Criar memórias As viagens de Teresa Ruivo mudaram desde que o desenho se tornou para ela tão vital como respirar. Agora os passeios em família passaram a incluir pausas para que ela possa desenhar. Algo que foi absorvido com naturalida­de. “Sabem que é uma coisa que gosto muito de fazer, vão dar uma volta e encontramo-nos depois”, diz. O desenho obriga a um tempo para olhar, para estar sozinha com o caderno e esse sentir que extravasa todas as suas palavras.

Nelson parece encontrar sempre as palavras certas. “Na realidade o que estamos a fazer é a criar memórias. O que aconteceu foi que nós desenhámos o tempo, o relógio parou naquele instante no mundo para nós o pormos numa folha.” Também o presidente dos Urban Sketchers tem família, que se adaptou à “nova família” e à sua nova rotina. Para

Qualquer pessoa pode pertencer aos Urban Sketchers. Basta querer. Não vale a desculpa de que não sabe desenhar. É levar o material e juntar-se ao grupo

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