HUGO MAIA
EM VEZ DAS 1001 NOITES CONTOU APENAS 282
Finalmente um português traduziu Xerazade do árabe
Por estes tempos, Hugo Maia começa o seu dia de trabalho de tradução lendo uma noite de As Mil e Uma Noites, e termina-o a ler Literatura de Cordel, Uma Antologia, de José Viale Moutinho, para se “inspirar”. Pergunta-se: o que é que essa primeira obra, conduzida pela narração da eterna Xerazade ao rei Xariar, e de que Hugo traduziu já 101 noites, num primeiro tomo, tem que ver com a literatura de cordel em Portugal?
“As Mil e Uma Noites fazem parte de uma série de textos de tradição oral que nunca foram apreciados pelas elites literárias. Aliás, encontramos pouquíssimas referências a esses contos pelos grandes sábios da literatura árabe, e quando se lhes referem é com um certo desprezo. É um tipo de literatura que é marginalizada, por várias razões, exatamente como a literatura de cordel. É um livro que, no fundo, segundo os cânones das belles lettres árabes, está mal escrito. Para mim aquilo não está mal escrito: está muitissimamente bem escrito.” Antes da literatura de cordel, o tradutor também passou muito tempo a ler contos tradicionais portugueses, também pela aproximação que intuiu entre estes e As Mil e Uma Noites, justamente pela sua tradição oral.
Hugo Maia trabalha agora no segundo e último tomo da primeira tradução feita em Portugal a partir do árabe, que será novamente publicado pela E-Primatur. E quem ficou suspenso no final da 101.ª noite poderá retomar o fôlego da narração no verão de 2018, onde se terminará a tradução das (afinal) 282 noites que compõem a obra. Antes da entrevista, pedimos se poderia trazer o livro com os manuscritos que segue para a tradução. Ele responde com um link da Biblioteca Nacional de França (além deste recorre ao manuscrito da Biblioteca John Rylands de Manchester): lá estão As Mil e Uma Noites na versão mais antiga que se conhece, do século XIV, tão diferentes, como Hugo Maia tem repetido, da ideia que dela habitualmente temos, e que ele próprio tinha.
Repor a verdade do texto Inicialmente, o tradutor, antropólogo de formação, e que estudou a língua árabe na Tunísia e viveu em Marrocos, pensou em recusar o trabalho de tradução desta obra: “Mas depois comecei a aperceber-me de que o livro era muito mais interessante do que eu pensava, como afinal tudo o que conhecia eram invenções muito recentes sob influência do orientalismo; e mesmo a edição que eu já tinha em árabe, uma edição corrente, dita completa e original com 1001 noites, na verdade não tem nada que ver com os textos dos manuscritos antigos, apesar de haver histórias que coincidem, só que são sempre altamente transformadas e suavizadas.”
Os leitores de língua portuguesa devem-lhe agora a compreensão de que histórias como “Aladino” ou “Ali Babá e os Quarenta Ladrões” foram, na verdade, contadas por um sírio chamado Hanna Diab ao orientalista francês Antoine Galland, que além de suavizar ou adulterar o texto original lhe acrescentou várias histórias para que a sua versão do século XVIII fosse suficientemente grande e aparentasse conter mil e uma noites, número que Hugo Maia não acredita que corresponda ao total original de noites. “Mas isto é sempre especulativo”, explica aquele que, graceja, foi “enganado” quando começou a aprender árabe: “Não me apercebi de que a língua era assim tão difícil quando comecei a aprender e depois já era tarde de mais.”
O tradutor, que muito tem falado destas questões que expõe amplamente no preâmbulo do primeiro tomo, e que as retomará no posfácio deste segundo, confronta ainda o texto dos manuscritos com uma edição crítica de Muhsin Mahdi, já do final do século XX. O intuito, percebe-se no seu discurso, é chegar aqui, como diria mais à frente: “Acho que as pessoas têm o direito a conhecer As Mil e Uma Noites como elas eram contadas quando surgiram.” E como eram? “No caso do mundo árabe, havia muito o hábito de contar contos na praça pública. Sabemos isso por vários registos de viajantes. E ainda hoje acontece na Praça Jemaa el-Fna, em Marraquexe. Era normal os contadores de contos alugarem livros nas livrarias, e inspiravam-se nesses livros. Os contos eram decorados. Neste manuscrito do século XIV há vírgulas, e essas vírgulas marcam as pausas do narrador, a nível de desempenho.” Além disso, acrescenta Hugo Maia, a partir do século XV, o consumo do café, que partiu da região do Iémen e depressa se alastrou, “cria um novo espaço de convívio” e, consequentemente, um novo espaço para escutar histórias.
“Há uma coisa de que não falo no preâmbulo e que vou referir no posfácio do segundo volume. Estes manuscritos têm expressões que aparecem aqui e acolá que, com o editor, decidimos não incluir nesta edição, porque poderia atrapalhar a leitura, às vezes confundem-se com a voz de Xerazade. O ideal seria ter essas frases noutra cor. No original aparecem geralmente escritas a vermelho ou à margem. Dizem: ‘o contador da história disse’, ‘o autor da história disse’, ‘o narrador disse’. São cerca de meia dúzia de formas diferentes que aparecem. E às vezes só aparece ‘ele disse’, e este ‘ele’ é o autor da história. Isso é uma marca de que a pessoa que escreveu aquilo estaria a ouvir alguém a contar a história”, explica o tradutor.
“É um livro que, segundo os cânones das belles lettres árabes, está mal escrito” “Hoje as pessoas têm ideias extremamente erradas e fantásticas sobre o mundo dito árabe precisamente por causa de As Mil e Uma Noites” “Suponho que Xariar de certa maneira começasse a ter um bocado de medo deste poder das mulheres, e do que a Xerazade podia fazer-lhe, se ela não teria também certos poderes mágicos” HUGO MAIA TRADUTOR
Se o leitor está à espera de uma versão fantasiosa e suave desse livro de histórias fantásticas que compõem As Mil e Uma Noites, depressa Hugo Maia lhe puxará o tapete. “Hoje as pessoas têm ideias extremamente erradas e fantásticas sobre o mundo dito árabe precisamente por causa de As Mil e Uma Noites.” E continua: “A razão pela qual acho que é relevante ir buscar as versões mais antigas é porque são muito mais ricas, pela proximidade que têm à língua oral, não foram limpas ainda pelos cânones literários, são muito mais espontâneas; e há um espírito que acho muito interessante, uma crítica ao despotismo, às injustiças feitas pelos mais poderosos e pelos mais ricos, o açambarcamento das riquezas feito por quem tem poder.”
A força de Xerazade
Outro aspeto que destaca são as mulheres e, como tal, a própria Xerazade, que conta estas histórias ao rei Xariar para travar a carnificina que este havia posto em curso no território feminino, e para evitar que ela própria se tornasse uma das vítimas. “Nalgumas histórias as mulheres não são nada submissas aos homens, muito pelo contrário. Temos histórias em que há mulheres independentes, com dinheiro e poder, e a única coisa que lhes interessa com os homens é terem sexo e divertirem-se. Isso é claro na história ‘As Três Moças de Bagdad’. E por outro lado há outras em que as mulheres têm poderes mágicos terríveis e transformam homens em pedra, etc. Portanto suponho que Xariar de certa maneira começasse a ter um bocado de medo deste poder das mulheres, e do que a Xerazade podia fazer-lhe, se ela não teria também certos poderes mágicos.”
Para nos levar de volta àqueles contos fantásticos o tradutor está permanentemente a puxar-nos para os factos. “As [próprias] Mil e Uma Noites são uma deturpação de um outro livro que já existia, que era As Mil Noites, com fábulas do género moral, género que não caracteriza As Mil e Uma Noites. E n’As Cento e Uma Noites também aparecem Xerazade e o rei. Muitos destes contos não são originais nem exclusivos de As Mil e Uma Noites.” A única fantasia que sobrevive está, claro, presa pelo fio da narração de Xerazade, de noite para noite, de século para século.