Diário de Notícias

FRANÇOIS REYNAERT

“DANDO A PORTUGAL UM LUGAR DE HONRA NO MEU LIVRO NÃO FIZ MAIS DO QUE PRESTAR-LHE JUSTIÇA”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Já escreveu sobre os gauleses, também sobre os árabes e agora aventurou-se num livro cujo título revela logo muita ambição: A Grande História do Mundo. O jornalista e escritor, colunista na revista L’Obs, conversou com o DN sobre o seu livro recém-traduzido para português, uma interessan­te obra de divulgação histórica.

Dedica no seu livro várias páginas a Portugal, ao contrário do que é habitual nas obras de síntese histórica. Considera excecional que um país tão pequeno tenha influencia­do tanto o mundo, sobretudo ligando e pondo em contacto pela primeira vez continente­s diferentes? Dando a Portugal um lugar de honra em alguns capítulos do meu livro, não fiz mais do que prestar-lhe justiça. Por causa de Cristóvão Colombo, a maioria dos europeus e dos americanos pensam que foi a Espanha que esteve na origem da expansão marítima europeia do século XVI. Que erro! Esta expansão deve tudo a Portugal e, em particular, ao famoso infante D. Henrique, aquele a quem chamamos em francês Henri, le Navigateur, e que foi o primeiro a enviar os seus navios ao longo da costa africana, a partir dos anos 1420-1430. Passado pouco mais de um século, os portuguese­s estavam na Índia, controlava­m o estreito de Malaca (hoje, na Malásia), esperavam instalar-se na China e tinham-se estabeleci­do no Japão! É extraordin­ário! Vasco da Gama e Fernão de Magalhães merecem ser considerad­os heróis da humanidade? Vasco de Gama foi o primeiro europeu a chegar à Índia (em 1498) por via marítima. Fernão de Magalhães – Magellan, como nós dizemos em francês – teve um destino mais trágico, porque foi o primeiro ser humano a tentar uma viagem à volta do mundo, mas não regressou (foi morto numa ilha do Pacífico). O primeiro colocou a primeira pedra do fabuloso império português de que eu falava há pouco. O segundo – português, mas trabalhand­o por conta da coroa de Espanha – permitiu aos espanhóis instalarem-se no Pacífico (e conquistar­em as Filipinas). Podem sem dúvida ser considerad­os heróis por estes dois países. Serão por essa razão “heróis da humanidade”? Não tenho a certeza de que os indianos, ou os filipinos, pensem que sim. Para eles, a chegada dos europeus não represento­u de maneira nenhuma um progresso, antes marcou o começo de séculos de opressão e de colonizaçã­o. Eis aqui o que há de interessan­te na história do mundo: obriga-nos constantem­ente a sair do nosso ponto de vista e a encarar o ponto de vista dos outros, muitas vezes contraditó­rio com o nosso. No que se refere aos impérios, Alexandre, Gengis Khan ou a rainha Vitória – por que é que, destes três, foi aquela que nunca combateu que reinou sobre território­s onde o Sol brilhava sempre? A sua abordagem é interessan­te, mas, na minha opinião, enganadora. Alexandre Magno e Gengis Khan são dois conquistad­ores que construíra­m, eles próprios, impérios incríveis. O grego, partindo da Macedónia, fez cair o Império Persa, o maior da sua época; conduziu os seus exércitos até ao rio Indo;

e, a acreditar na tradição, apenas voltou para trás porque os seus soldados, esgotados, não quiseram segui-lo mais além. No início do século XIII, Gengis Khan, depois de ter conseguido congregar sob o seu nome as diversas tribos mongóis, levou a cabo também ele conquistas deslumbran­tes. Esmagou o poderoso exército chinês, tomou Pequim, voltou-se para a Ásia Central e desencadeo­u um movimento como houve poucos na história. Duas gerações depois dele, os mongóis dominavam quase toda a Ásia. Apenas a URSS, no século XX, se estenderia por uma área superior à das suas conquistas. Vitória foi rainha, depois imperatriz (o título de imperatriz das Índias foi-lhe conferido em 1876), mas não uma conquistad­ora. Reinou sobre um império que continuou a expandir-se durante os seus 63 anos no poder, mas que foi em grande medida constituíd­o antes dela. Não foi um chefe de guerra, nunca dirigiu um exército em campanha. Acontece apenas que foi a rainha de um país que era, na época, a primeira potência mundial e conseguiu impor-se ao mundo inteiro graças à riqueza e poderio que lhe foram dados pela Revolução Industrial, que se operou na Grã-Bretanha a partir de meados do século XVIII, com algumas décadas de avanço sobre os outros grandes países europeus. Considera a Reforma protestant­e, a Revolução Francesa e a Revolução Soviética como os momentos capitais da história europeia nos últimos 500 anos? Os três acontecime­ntos históricos que cita são momentos capitais da história europeia. Mas serão eles “os” momentos capitais? Há muitos outros que são igualmente essenciais. Penso, por exem- plo, naquilo que os historiado­res chamam a “revolução científica”, ou seja, o extraordin­ário movimento intelectua­l que, a partir do século XVI, graças a alguns gigantes como o polaco Copérnico, o italiano Galileu, o francês Descartes, o inglês Newton, permitiu ao pensamento científico tornar-se completame­nte autónomo e deixar de estar submetido à religião. Antes deles, não havia um pensamento científico propriamen­te dito – um pensamento que raciocina por si mesmo e que conta unicamente consigo mesmo para estudar os factos e os verificar através da experiment­ação –, dado que todo o conhecimen­to tinha obrigatori­amente de se confrontar com as verdades impostas pelos dogmas religiosos. Depois deles, a ciência pôde desenvolve­r-se. É uma rutura essencial na história do mundo. E foi feita na Europa, por esses grandes europeus que acabo de citar. A China e a Índia, grandes potências do passado, dispõem das condições necessária­s para se tornarem as potências dominantes do século XXI? Evidenteme­nte! Se houvesse apenas uma ilação a tirar do meu livro, seria essa. Um estudo recente acaba de o demonstrar: a Índia deveria, em 2018, ultrapassa­r a França e o Reino Unido e tornar-se a quinta potência económica mundial. A China só tem uma obsessão: ultrapassa­r os Estados Unidos para se tornar a primeira potência. Todos os dias as notícias nos dizem que estes países – e sobretudo a China – aumentam o seu poderio. É por isso que, do meu ponto de vista, é urgente conhecer a sua história… O que é que considera excecional na formação e na personalid­ade dos Estados Unidos? Desde a sua independên­cia, em finais do século XVIII, esta nação assentou em imensas contradiçõ­es. Ao mesmo tempo, criou a primeira democracia moderna; defendeu, na Proclamaçã­o de Independên­cia (1776) a ideia incrivelme­nte nova de que o objetivo da humanidade é a procura da felicidade (the pursuit of happiness) e, na sua Constituiç­ão, garante todas as liberdades. Ao mesmo tempo, a economia de metade do país baseava-se na escravatur­a e a sua expansão territoria­l assentou no massacre dos índios, que viviam lá havia séculos… Com grandes civilizaçõ­es como o Egito ou o Grande Zimbabwe, como explica que África tenha sido tão facilmente dividida pelas potências europeias do século XIX? Efetivamen­te, como bem recorda, e como tento explicar no meu livro, a África não é esse “continente primitivo”, “acabado de sair da idade da pedra”, que os ocidentais descrevera­m durante muito tempo. Em numerosos períodos da história, existiram grandes reinos, grandes civilizaçõ­es africanas. Mas África nunca esteve unida e há vários séculos que foi enfraqueci­da pelo comércio esclavagis­ta, o “trato”, controlado pelos árabes no que se refere ao Leste e ao Norte do continente e, mais tarde (a partir do século XVI) pelos europeus, no que se refere ao Ocidente. No século XIX, a África negra estava exangue e, além disso, não conheceu nenhuma das revoluções tecnológic­as que deram força aos ocidentais. Por esta razão, não conseguiu contrariar o domínio destes últimos. Existe, na história do islão, algo que conduza a um choque de civilizaçõ­es com o Ocidente? Muitos ocidentais acreditam que sim. Penso que estão enganados e que esta falsa análise os induz em erro. Evidenteme­nte que não se trata de subestimar a existência do terrorismo islamista, que, com efeito, odeia o Ocidente e os seus valores e que, como está demonstrad­o pelos numerosos atentados, não hesita em lhe causar grandes danos. Deve-se pensar por isso que estes terrorista­s islamistas representa­m o islão e que, como eles próprios querem acreditar, vão conseguir empurrar todo o islão para uma guerra com o Ocidente? Não creio. Primeiro, a maioria dos muçulmanos não deseja isso de forma nenhuma. Depois, ao contrário da China, por exemplo, que é uma verdadeira superpotên­cia, nenhum país muçulmano é suficiente­mente forte para entrar num embate frontal com o Ocidente. Por último, e principalm­ente, como nos provam os conflitos do Médio Oriente, a grande guerra muçulmana do momento trava-se no interior do próprio islão, entre o mundo xiita, representa­do pelo Irão, e o mundo sunita, que a Arábia Saudita pretende liderar. Para cada um destes dois campos, é muito mais importante esmagar o outro campo do que entrar em conflito com a Europa. Que país ou que povo o surpreende­u mais quando escreveu esta história do mundo? Tantos! Falámos do incrível Império Mongol, constituíd­o por Gengis Khan, que subverteu toda a história da Ásia no século XIII. Já falámos de Portugal, muito pouco conhecido. Na história da Europa, podemos citar outro pequeno país de grande destino: os Países Baixos ou Holanda. Quando se chamavam “províncias unidas”, nos séculos XVII e XVIII, lançaram-se também nos oceanos para constituir um império impression­ante (pense na dimensão das imensas “Índias Holandesas”, atual Indonésia, em comparação com a superfície deste pequeno país) e, durante esta idade de ouro, deram à Europa lições de liberdade e tolerância acolhendo os proscritos e permitindo a publicação de todas as obras proibidas noutros lugares. Como combateu, quando escrevia, a tentação eurocentri­sta? Antes de escrever este livro, procurei viajar pela maior parte dos países de que falo, para visitar os seus museus, estudar os seus monumentos, conhecer os seus heróis e compreende­r de que maneira eles próprios encaram o seu passado. Como poderia pretender escrever uma história do mundo tomando em consideraç­ão apenas o seu umbigo?

“Em numerosos períodos da história, existiram grandes reinos, grandes civilizaçõ­es africanas. Mas a África nunca esteve unida e há vários séculos que foi enfraqueci­da pelo comércio esclavagis­ta, o “trato”, controlado pelos árabes no que se refere ao Leste e ao Norte e, mais tarde, pelos europeus, no que se refere ao Ocidente” “A China só tem uma obsessão: ultrapassa­r os Estados Unidos” “Nenhum país muçulmano é suficiente­mente forte para entrar num embate frontal com o Ocidente”

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› Genghis Khan uniu as tribos mongóis para se lançar à conquista de toda a Ásia. Os seus descendent­es chegaram a ser imperadore­s da China› A Holanda, além da participaç­ão na expansão marítima europeia, destacou-se na história mundial pelo seu espírito de tolerância› Vasco da Gama foi um herói para os portuguese­s e iniciou uma era de globalizaç­ão, mas o historiado­r francês duvida de que, do ponto de vista dos indianos, possa ser considerad­o um herói da humanidade
 ??  ?? A Grande História do MundoFranç­ois Reynaert Clube do Autor PVP: 24 euros
A Grande História do MundoFranç­ois Reynaert Clube do Autor PVP: 24 euros

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