O trabalho da morte de Michael Powell
Cinema sobre o medo? Não exatamente. Neste caso, devemos falar de cinema habitado pelo medo. A personagem central é um cineasta amador que utiliza a sua câmara como instrumento de um terrível dispositivo dramático: ele filma as suas vítimas femininas nos próprios momentos em que as mata – o irremediável pânico que as invade é o tema visceral do seu desejo de cinema.
Raras vezes o cinema arriscou tanto, e de modo tão radical, na ilustração simbólica dessa maldição para sempre consagrada no célebre axioma de Jean Cocteau: “O cinema filma a morte no trabalho.” Não se trata apenas de retratar um assassino que usa a técnica cinematográfica para consumar os seus crimes. Através dessa dimensão “policial” da intriga, este é um filme sobre o desejo de ver (o título original, Peeping Tom, remete para a noção de voyeurismo) e a sua cruel cumplicidade com a pulsão de morte.
No âmago desta história contada com o rigor metodológico de um ensaio sobre os fantasmas na natureza humana está, como é óbvio, um outro medo visceral: o dos homens face às evidências e, sobretudo, aos enigmas do universo feminino. Grande questão existencial e cultural que, evidentemente, não é possível enfrentar num mundo em que se coloca no mesmo plano uma “violação” e um “apalpão” (recentemente, Matt Damon chamou a atenção para a necessidade de não banalizar tudo isso numa guerra infinita entre “homens” e “mulheres”, mais não conseguindo do que uma série de pueris condenações mediáticas).
Enfim, está longe de ser uma questão dos nossos dias... Muito incompreendido na altura do seu lançamento, o filme contribuiu para uma certa marginalização do realizador Michael Powell (1905-1990), ele que tinha sido consagrado pelos clássicos da produção britânica, incluindo Os Sapatos Vermelhos (1948), que assinara com Emeric Pressburger. Lembremos, por isso, que para a reavaliação artística de Powell muito contribuiu Martin Scorsese e também Thelma Schoonmaker (que foi casada com Powell e é a montadora da maior parte dos títulos da filmografia de Scorsese). Registe-se ainda a calculada ironia decorrente do facto de o papel central de A Vítima do Medo ter sido entregue a Karlheinz Böhm – ele era, afinal, o romântico imperador apaixonado pela princesa Sissi na série de filmes protagonizados por Romy Schneider.