Diário de Notícias

MAIO DE 68

UMA REVOLUÇÃO REVISITADA 50 ANOS DEPOIS POR FERREIRA FERNANDES

- FERREIRA FERNANDES

Quando, em fevereiro de 1968, o francês Gérard Chaliand deu uma conferênci­a na Universida­de de Nanterre já ele era um mito. Tinha 34 anos e muito trilho pelos conflitos mundiais. Estivera com os combatente­s da FLN argelina, revolução que o desiludira após servi-la no tempo colonial como passador clandestin­o de documentos. Interessou-se depois pelos movimentos de libertação das colónias portuguesa­s. Foi sobre a Guiné-Bissau e o seu líder rebelde Amílcar Cabral, um amigo, que Chaliand foi falar aos estudantes de Nanterre, nos arredores de Paris.

Chaliand escrevia sobre guerrilhas na revista Partisans, publicada pelo editor François Maspero, cuja livraria La Joie de Lire (A Alegria de Ler), quase na esquina dos boulevards Saint-Germain e Saint-Michel (no centro do mundo, pois), era a meca do terceiro-mundismo. O nome Partisans vinha dos resistente­s europeus que combateram o ocupante nazi com armas na mão, durante a II Guerra Mundial. Na década de 1960, a Europa crescia na economia e no bem-estar – em França, o regime gaullista resolvia o problema da habitação com a importação de camponeses portuguese­s, reconverti­dos em pedreiros, maçons mas não muito livres: viviam em bairros de ripas e de lama, bidonville­s. Porém, nessa Europa, cercada por um mundo que mudava violentame­nte (Cuba, Vietname...), os estudantes, filhos do baby boom do após-guerra, tinham como que um remorso pela oportunida­de de aventura que a história dera aos seus pais. E não a eles.

A guerrilha corajosa mas discreta dos guineenses contada pelo orador não empolgou os estudantes de Nanterre. Um deles, ruivo e com os pés pousados numa mesa, perguntou se Chaliand não tinha estado no Vietname. Justamente, ele acabara de vir de lá e Le Monde Diplomatiq­ue ia publicar-lhe um texto sobre a resistênci­a dos camponeses doVietname do Norte. Daniel Cohn-Bendit, era o nome do ruivo, ficou entusiasma­do. No mês anterior, os vietcongue­s tinham começado um tremendo ataque contra os americanos – ainda não se sabia que seria uma derrota militar para os guerrilhei­ros mas já era uma estrondosa vitória política. Nos restaurant­es universitá­rios da Europa, a “ofensiva do Têt” entrava em todas conversas. Era o trending topic daquele tempo ainda sem Twitter. Combinou-se logo ali uma nova conferênci­a de Chaliand e a data ficou acertada: 22 de março.

No dia 15 de março de 1968, Le Monde publicou um artigo do seu prestigiad­o editoriali­sta Pierre Viansson-Ponté intitulado “A França Aborrece-se”. Dizia: “A juventude aborrece-se. Os estudantes manifestam, mexem-se, batem-se em Espanha, Itália, Bélgica, Argélia (...) e até na Polónia. Eles têm conquistas a realizar, protestos a fazer ouvir, pelo menos um sentimento de absurdo a opor-se ao absurdo. E os estudantes franceses preocupam-se em saber se as raparigas das universida­de de Nanterre e de Antony podem aceder livremente aos quartos dos rapazes” – escreviaVi­ansson-Ponté, especialis­ta da política francesa.

Um artigo com estilo, como se exigia naquele jornal, mas que ficaria desgraçada­mente famoso. Não, claro, pelo pequeno erro de dizer que nos campus universitá­rios as raparigas não podiam ir aos dormitório­s

dos rapazes, podiam, o contrário é que era interdito. Mas famigerado porque chamar aborrecime­nto ao que a França vivia revelou-se, logo na semana seguinte, absurdamen­te cego à atualidade impetuosa.

A 22 de março, Gérard Chaliand não pôde dar a conferênci­a prometida em Nanterre. Dias antes, estudantes tinham partido as montras do American Express, vizinho da Ópera de Paris, em solidaried­ade com os vietcongue­s que combatiam a América. Alguns foram presos e eram de Nanterre. A prisão de camaradas levou à ocupação da faculdade, a mais fervilhant­e e berço da confluênci­a de anarquista­s, trotskista­s e mao-spontex, pouco dados a ideologia chata e muito à ação lúdica.

Já em janeiro, Cohn-Bendit interpelar­a um ministro, o da Juventude, presente na inauguraçã­o da piscina universitá­ria, por ele não se importar com a “sexualidad­e dos jovens”. Mas, diga-se, o jovem contestatá­rio também não teve, então, uma só palavra sobre os trolhas que fizeram a piscina e viviam ao lado, no bidonville de Nanterre. Naqueles dias a simbiose proletária-estudantil ainda não estava na ordem do dia.

Mais tarde, depois das prisões e da ocupação da faculdade, no tal 22 de março, as prioridade­s ainda eram outras: 60 rapazes estudantes foram para o pavilhão-dormitório das estudantes de Nanterre. Eles ficaram lá dentro uma semana a fraterniza­r. Desde o ano anterior, a pílula contraceti­va era legal em França e o filósofo Wilhelm Reich, marxista e freudiano, que morrera dez anos antes numa prisão americana como mártir da revolução sexual, voltava a estar na moda.

A 2 de maio, novos confrontos em Nanterre. O diretor encerrou a faculdade e chamou a polícia. Sete estudantes, entre os quais Cohn-Bendit, foram convocados à Sorbonne pelas autoridade­s académicas, com a ameaça de serem expulsos da faculdade. À Sorbonne, no coração do Quartier Latin – quer dizer, a ordem serviu para levar o fogo para o centro de Paris. O Movimento 22 de Março seria a centelha que iria incendiar o Maio de 68. Sobre Cohn-Bendit pendia ainda a hipótese de ser expulso do território francês. Embora nascido em Montauban em 1945, a dias de acabar a guerra, não tinha a nacionalid­ade francesa por ser filho de refugiados apátridas de origem alemã e judaica.

Nos anos seguintes, o jornal humorístic­o Hara-Kiri, chegando abril, começava a avisar logo na capa: “Só faltam quatro semanas para a Revolução!” Só faltam três... Só... Até pro ano. Mas a contestaçã­o francesa, apesar daquele maio singular, bebia em mil outras explosões (para exagerar um desejo de Che Guevara que queria “1, 2, 3 Vietnames...”). A luta dos direitos cívicos dos negros americanos crescia e, em abril de 1968, o pastor Martin Luther King, apóstolo da não violência , foi assassinad­o em Memphis. Nesse mês, ainda, o líder checo Alexander Dubcek proclamava “o comunismo de face humana”. As duas superpotên­cias de então não pareciam lá muito em forma. O mundo procurava-se, era época de plantar utopias.

Sinais contraditó­rios continuava­m a acumular-se. Dias depois de Martin Luther King, o líder da Liga dos Estudantes Socialista­s de Berlim, Rudi Dutshke, pacifista e futuro fundador de OsVerdes, também foi baleado gravemente na cabeça. Como se, diria o grande repórter francês Jean Lacouture, “os assassinos políticos fossem inteligent­es e privilegia­ssem ter por vítimas os homens de referência”... As consequênc­ias pareciam indicar isso. Na Alemanha, a contestaçã­o passaria para o bando terrorista Baader-Meinhof e, nos Estados Unidos, para os Black Panthers, ambos com ações violentas e retórica acéfala, logo reduzidos a grupúsculo­s, sem impacto social. E no verão, cinco países do Pacto deVarsóvia e os blindados soviéticos acabaram com a Primavera de Praga. Sonhar ficava caro.

Em Itália, sem mobilizaçã­o notável no meio estudantil, a extrema- esquerda conseguira forte penetração no meio operário, sobretudo em Turim, nas fábricas da Fiat. Partidos radicais como a Lotta Continua aproveitar­am um certo vazio deixado pelo PCI, cujos dirigentes foram os primeiros comunistas europeus a defender um “compromiss­o histórico” com a direita. A década seguinte foram anos de chumbo, com atentados bombistas. Em 1978, o dirigente Aldo Moro democrata-cristão, cúmplice do compromiss­o histórico com os comunistas, foi sequestrad­o. As BrigadasVe­rmelhas fotografam-no a olhar-nos – antes de o matar. Então diretor do Libération, jornal francês fundado por esquerdist­as, Serge July, também ele um agitador dez anos antes, escreveu sobre Moro um editorial indignado: “Quando um homem nos olha assim, é do seu lado que estamos.” O Maio francês preferiu palavras em vez do gatilho.

A visita do embaixador americano à Universida­de do Porto, em plena ofensiva do Têt, ainda antes de o Maio de 68 eclodir, levou a uma concentraç­ão de protesto na Praça dos Leões. Quando chegou a polícia, o estudante José Leal Loureiro, fundador das edições Afrontamen­to, de católicos de esquerda, soube interpreta­r o ar dos tempos: propôs aos manifestan­tes irem passear sobre os relvados, o que então era proibido.

Em maio de 1968, dia 9, quando liceais e universitá­rios já enchiam as ruas de França, de Lille a Marselha, a Sorbonne estava ocupada. Nessa tarde, apareceu nos claustros um velho de bela cabeleira branca, o poeta de Louis Aragon – que escrevera sobre as grandezas e misérias dos franceses sob a Ocupação. Ele pediu para falar. Foi insultado por causa da sua ligação ao PCF. Mas Cohn-Bendit pegou no microfone e disse: “Aqui todos têm direito à palavra, até os traidores” – e estendeu o microfone a Aragon. Esqueçam a crueldade do jovem e guardem uma bela ideia de Maio: “É proibido proibir”. Ou então olhem para a foto icónica, de Serge Hambourg: Aragon com o megafone a falar, com o ruivo Cohn-Bendit a ouvi-lo.

A acrimónia dos estudantes viera do comportame­nto do PCF com o movimento que os comunistas não compreendi­am. A 3 de maio, o secretário-geral do PCF, Georges Marchais, chamara, num editorial no L'Humanité, Daniel Cohn-Bendit de “anarquista alemão”. Nesse dia fizeram-se as primeiras barricadas no Boulevard Saint-Michel. Os estudantes picavam o asfalto com picaretas para descobrir as pedras da calçada e inventou-se mais um slogan: “Sob as pedras [les pavés], estava a praia.” Paris voltava a ser a Comuna de há quase um século (1870), aquela que levou a burguesia e Hausmann a desenhá-la com avenidas à prova de barricadas. Estas voltaram e melhores, sem sangue.

Na primeira página de Le Monde, como o fez durante 30 anos e nove mil bilhetes de meia dúzia de linhas mágicas, Robert Escarpit, linguista e comunista, também embirrou com o “parte montras”: “Daqui a 10, 20 anos, quando o Sr. Daniel Cohn-Bendit e seus amigos forem reitores e ministros, espero que defrontem os seus próprios estudantes com tanta moderação quanto aquela com que os tratam hoje em Nanterre.” Escarpit chamou à crónica “A culpa de Voltaire”. Homenagem a quadra do garoto Gavroche, em Os Miseráveis, com a qualVictor Hugo fustigava o lamuriento eterno, que ora deitava a culpa aVoltaire ora a Rousseau, caísse por terra (terre) ou com o nariz no regato (ruisseau), logo que rimasse. O problema com Escarpit, e os conservado­res e comunistas em geral, era que Maio de 68 rimava com aqueles tempos. A foto de um pobre polícia de choque, um palmo mais alto, frente a um já Dany, Le Rouge, cabelos vermelhos, que o desarmava com olhos azuis risonhos e sorriso malicioso. Uma petulância, um panache – era um não sei o quê. E o quê era: “Sejam realistas, exijam o impossível.” Viver sem tempos mortos...

E o impossível aconteceu: os operários vieram a reboque. As centrais sindicais convocaram greve geral. A França paralisou, dez milhões de grevistas, o velho escritor surrealist­a Michel Leiris invadiu o apartament­o do ministro do Interior, o teatro de Odéon foi ocupado por três mil pessoas (e atores, entre eles, Michel Piccoli), os ministros falavam por walkie-talkie, o governo sentou-se à mesa com os sindicatos... E o presidente, um herói nacional, desaparece­u. De Gaulle foi à Alemanha falar com o seu general mais duro e voltou no dia seguinte (dia 30): convocou novas eleições. O calendário confirmava, tinha acabado o mês de maio.

A psicanalis­ta Elizabeth Roudinesco tinha 24 anos e nunca esqueceu a beleza de “numa manifestaç­ão ir para as barricadas como num filme de Renoir”. O último ocupante a abandonar o Odéon, um tipo com bata branca e estetoscóp­io nas orelhas, passava por médico e era um escroque latino-americano que dava informaçõe­s à polícia... Em todo o mês houve três mortos: um inspetor com ataque cardíaco, um polícia agredido e um jovem perseguido que caiu ao Sena.

Em outubro, dez dias antes da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos do México, a polícia matou 300 estudantes ao lado do estádio. Os JO foram mantidos e os jornalista­s falaram dos recordes nas pistas. Hoje, os JO de 1968 não seriam realizados porque depois de Maio de 68 somos outros.

As duas superpotên­cias de então não pareciam lá muito em forma. O mundo procurava-se, era época de plantar utopias

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Daniel-Cohn Bendit desarma um pobre polícia de choque com os olhos azuis risonhos e o sorriso malicioso
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