Diário de Notícias

MULHERES TAXISTAS “ENQUANTO FORMOS NÓS A PARIR NÃO ME FALEM EM FRAGILIDAD­E”

- FERNANDA CÂNCIO

“Agora há muito mais mulheres nos táxis. Nesta profissão não há nada que afaste as mulheres, mas ao princípio tive ‘colegas’ a passar por mim no carro e a mandar-me para casa coser meias. Houve quase um boicote. E se calhar ainda hoje para os motoristas mais antigos uma mulher nesta função não é muito bem-vista.”

É Fátima Marçal, 49 anos, que fala. Conduz um táxi há 12, e diz adorar. “Gosto imenso de conduzir. E da liberdade. Esta profissão tem imensa liberdade. E todos os dias aprendo alguma coisa de novo.” Tem o 12.º ano. Pensou ser educadora de infância. Mas casou e “era para continuar a estudar à noite mas depois não deu”. Teve vários empregos: foi contabilis­ta, esteve num call center, e depois numa loja a atender público. Mas há 16 anos o marido, que tinha um restaurant­e, fechou-o. “Ainda procurou emprego mas não aparecia nada com boas condições e acabou por decidir comprar um táxi. Eu estava insatisfei­ta com o meu trabalho, que era muito longe de casa, e fui tirar o CAP [certificad­o de aptidão profission­al para motorista de táxi]. Comecei a fazer fins de semana, gostei.” Mudou e não põe de parte fazer isto até à reforma. Mesmo se ainda acalenta-a hipótese de retornar aos estudos. “Nunca é tarde para amar”, graceja. “Mas agora escolheria Psicologia. Estas coisas mudam com a idade, não é? Ainda no outro dia andei na net a ver cursos de Psicologia.” Enquanto não a estuda, pratica-a, ao volante. “Gosto de subir ou descer ao nível do cliente, saber adaptar-me, adequar o diálogo a um miúdo que apanho às cinco da manhã vindo dos copos na discoteca ou a um idoso – apanhamos muitos idosos que se percebe que estão carentes de atenção.”

Coisa curiosa, quando ela e o marido fazem contas, constatam que as gorjetas são muito diferentes. “A ele dão cinco, dez cêntimos, a mim é aos euros: um, dois, três...” Ri. “Os clientes elogiam a minha condução, dizem que é suave, e que tenho boa apresentaç­ão. Ainda nesta semana fui levar um senhor inglês ao aeroporto, a conta era 11 euros e tal e ele deu-me vinte e não quis troco. Fiquei com a nota na mão de boca aberta.” Será por ser mulher? “Atribuo à forma como trato os clientes, mas não ponho de parte essa hipótese.”

Apesar de não ser um trabalho fácil – inicia o seu turno às cinco da manhã, coisa à qual diz ter-se habituado – vê com bons olhos que a filha, de 27 anos, tire o CAP. “Ela diz que um dia que eu e o meu marido nos reformemos pode pegar nisto, e eu acho bem, não tenho qualquer problema com isso, é uma ferramenta de trabalho, e uma profissão como qualquer outra.” Mesmo se, conta com uma gargalhada, já a entrevista­ram na TVI “por ser ‘uma mulher com profissão de homem’”. Um disparate, conclui.

“Taxistas são muito machistas” Porque será, de facto, que a maioria esmagadora – 90,84%, de acordo com os números enviados ao DN pelo Instituto da Mobilidade e dos Transporte­s (IMT) – dos motoristas de táxi é homem, se se trata de uma profissão em que basta ter carta para ser candidato? José Domingos, empresário do setor com 15 motoristas ao seu serviço, dos quais só uma mulher, hesita na resposta. “Talvez por ser uma profissão muito exposta, com algum grau de risco, contacto com todo o tipo de gente. O sexo feminino é talvez mais frágil, e a sociedade acha que por isso se trata de uma ocupação eminenteme­nte masculina.” Mas, no que lhe diz respeito, acha igual. “Até deveria haver mais mulheres nos táxis, melhorava a imagem, que não é boa. As mulheres talvez não tenham tanta tendência para entrar em conflito...”

Maria Lopes ri. “Enquanto formos nós a parir não me falem de fragilidad­e.” Com 52 anos e motorista há 11, acha que as mulheres “não entram na profissão por timidez, e por vivermos numa sociedade muito machista. Todas as profissões de exposição direta ao público têm risco e perigo, mas isso aplica-se a médicas, enfermeira­s, e muitas outras. Não acho que este trabalho apresente problemas para as mulheres.” Ainda assim, quando decidiu tirar o CAP os pais, conta, ficaram escandaliz­ados. “A minha mãe achou que eu tinha enlouqueci­do.” Até porque se tratava de “abraçar um desafio que nada tinha a ver com a minha formação.” É que Maria tem o curso que Fátima quer tirar – Psicologia. “Ser motorista de táxi foi entrar num mundo que eu achava que estava muito desqualifi­cado. E ainda acho.” Outra coisa que acha é que “os colegas são muito machistas. Não reagem bem ao ver mulheres na profissão. Sentem-se intimidado­s, têm medo de ser ultrapassa­dos.” Porque as mulheres têm de um modo geral mais formação académica? “Nem vou por aí, mas pela educação, por serem mais discretas, mais pacientes, se calhar com mais vontade de se darem às pessoas.” E quiçá mais lavadinhas e arranjadas? Maria ri. “Quando comecei as pessoas ficavam surpreendi­das com o meu ar feminino. Uma entrou no carro e disse: ‘Ai que admirada que estou por usar brincos e ter as unhas pintadas.’ E crianças a entrarem no táxi e dizerem ‘Ah, é uma senhora’, muito espantadas.”

O facto também já lhe valeu algumas experiênci­as de assédio por parte de clientes. “Muitas vezes faço de conta que não percebo, porque acho que na maioria dos casos são trajetos tão curtos que nem vale a pena mostrar incómodo.” Mas há um caso que lhe ficou na memória: “Transporte­i um senhor de muita idade até ao Largo Camões e ele pediu-me o número. Dei, não me passou pela cabeça que se tornaria invasivo, mas ligou-me depois a perguntar se não queria conhecer o escritório dele, que era junto ao El Corte Inglés. Começou a chamar-me para serviços com muita frequência e um dia tentou galantear-me. E eu disse-lhe que lá por eu ser motorista de táxi ele não tinha a liberdade de ser invasivo.”

Conta também que pelo seu aspeto e trato percebe que as pessoas acham que tinha tido algum azar na vida para se encontrar a conduzir um táxi. “Pensam ‘ai coitadinha ficou desemprega­da’.” E se reputa o trabalho de “muito interessan­te” assume que a adaptação “ao mundo da atividade ainda hoje é difícil, por causa do nível social, da filosofia de vida. Nunca me envolvi muito com os outros motoristas porque antes de mais tinha um objetivo que era trabalhar o máximo possível. Nunca fui de parar muito

“Ao princípio houve quase um boicote. E ainda hoje para muitos motoristas mais antigos uma mulher nesta função não é bem-vista” “Não acho que este trabalho apresente problemas para as mulheres. Não entram por timidez, e por a sociedade ser muito machista”

em praças de táxi nem queria conhecer muito as pessoas – e quando dizem ‘os seus colegas’ eu digo não me digam isso.” Crê que a facilidade de acesso permite que “venham cá parar pessoas problemáti­cas. E se a entidade patronal não faz triagem... Além disso, não há fiscalizaç­ão nenhuma. No que respeita ao estado do motorista, à sua aparência e por aí fora, coisas que a lei exige mas não são cumpridas. Se calhar se as pessoas fossem multadas porque o motorista cheira mal ou o carro está sujo as coisas mudavam. Gostava que se tornasse uma profissão diferencia­da. E ser mulher não é de todo um handicap, devia haver mais.”

“Não me vejo a fazer outra coisa” Com 22 anos de taxista (começou em 1995 e teve quatro anos de interregno) Célia Dias Luís, a única motorista mulher do empresário José Domingos, entrou na profissão vinda de um trabalho de balcão numa pastelaria, com 25 anos. “Nessa altura nem era preciso o curso. Tinha tirado a carta em 1993 e pensei experiment­ar ser taxista. Nunca tinha pensado nisso antes e não conhecia nada das ruas. E como era nova e tinha aspeto de ser ainda mais nova, as pessoas achavam muita piada, até me ensinavam o caminho.” Desde então até agora nota, diz, muita diferença no número de mulheres na profissão. “Há muito mais. Algumas andam aí uns tempos e desistem, outras continuam. Há muitas que entram nisto porque os maridos já estão na profissão.” Durante muito tempo, acha, as mulheres taxistas eram precisamen­te as viúvas de taxistas, que pegavam no carro do marido por uma questão de sobrevivên­cia. Ela, divorciada, nunca teve marido no métier. Precedente só o do pai, motorista de autocarros. Ainda assim ele e a mãe encararam a coisa “com preocupaçã­o”: “Acharam que era uma grande aventura, que não estava a fazer a coisa correta.”

Não foi possível averiguar das relações de parentesco entre as mulheres e os homens taxistas, mas, de acordo com os dados do IMT, não há grande diferença na idade da taxista mais velha com certificad­o ativo (têm de ser renovados de cinco em cinco anos) e o mais velho: ele nasceu em 1927, ela em 1929. Se continuam a trabalhar com 90 e 88 anos não se sabe – nem quem são, já que o IMT, naturalmen­te, não os identifica entre os 24 610 taxistas “certificad­os” do universo. Outros dados que o IMT não revelou ao DN, apesar de terem sido pedidos, dizem respeito à evolução da percentage­m de mulheres nos últimos anos, à sua distribuiç­ão por região e ao número de candidatos que “chumbam” no CAP e sua distribuiç­ão por género.

Não é pois possível saber se a impressão de Célia – de que casos como o de Fátima são mais comuns no universo das mulheres taxistas do que o seu próprio – está correta. Mas Joana Marçal, taxista desde os 24 e agora com 28, parece dar razão à teoria. Casada com um ex-engenheiro informátic­o filho de um taxista que quando o pai se reformou tomou conta do negócio paterno, Joana conviveu com a nova profissão do marido durante oito anos até se converter. Com o 12.º ano, era lojista num centro comercial quando resolveu tentar. “Gostei, neste momento não me estou a ver a fazer outra coisa.” Mas, confessa, “nunca pensei ser taxista, não é uma coisa que se tenha na cabeça quando se está a estudar, nem pensamos nisto como profissão.” Sendo “um mundo pouco explorado pelas mulheres”, acha que existe bastante apetência dos clientes por motoristas femininas. “Muitas mulheres que transporto pedem-me o contacto porque se sentem mais seguras com uma motorista, e há homens que também pedem para as mulheres e os filhos.” Quanto aos eventuais perigos, acha que é “uma questão de sorte”. Pegando a trabalhar às quatro da manhã no inverno, nunca teve uma muito má experiênci­a: “Só gente que foge sem pagar.” Quanto à relação com os outros motoristas, apesar de reconhecer que “existe muito ainda aquela classe antiga que assedia as mulheres”, sentiu-se sempre bem acolhida, mas atribui ao facto de o marido já ser da profissão quando entrou: “Até fui protegida, acho.”

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 ??  ?? Célia Dias Luís, 47 anos (em cima), começou aos 25, vinda do balcão de uma pastelaria; Maria Lopes, 52 anos, tirou o CAP há 11
Célia Dias Luís, 47 anos (em cima), começou aos 25, vinda do balcão de uma pastelaria; Maria Lopes, 52 anos, tirou o CAP há 11

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