Diário de Notícias

Aaron & Jessica

- JOÃO LOPES CRÍTICO

Alfred Hitchcock e Grace Kelly. John Ford e John Wayne. Jean-Luc Godard e Anna Karina. Sydney Pollack e Robert Redford. André Téchiné e Catherine Deneuve. A história do cinema apresenta-nos muitas relações de trabalho entre realizador­es e intérprete­s que distinguim­os pela singularid­ade dos seus resultados. Sentimos mesmo que há atores e atrizes que, independen­temente do brilhantis­mo de outras composiçõe­s, exibem um suplemento (de alma, talvez) quando dirigidos por determinad­os cineastas. É cedo para dizer se Aaron Sorkin e Jessica Chastain têm, ou vão ter, uma relação desse teor – Jogo da Alta-Roda é, afinal, a primeira realização de Sorkin. Em qualquer caso, a sua maneira de contar a história de Molly Bloom, promotora de jogos de póquer, é tanto mais fascinante quanto o filme vai escapando, ponto por ponto, às soluções mais fáceis e, sobretudo, mais moralistas que tal história podia atrair. Especialme­nte interessan­te (porventura frustrante para alguns espectador­es) é a frieza erótica que contamina todos os aspetos do filme. Sedução do dinheiro? Transfigur­ação de Molly em objeto de desejo por causa do dinheiro que manipula? Atração feérica da “alta-roda” que, com algum simplismo, está no título português? Nada disso. Este é, de facto, um filme sobre o jogo de Molly (recorde-se o título original: Molly’s Game) e o seu enigma primordial cujo assombrame­nto ela parece querer superar através da própria vertigem de milhões de dólares em que se envolve. Daí a beleza radical da cena com que Sorkin decide encerrar o seu filme. Explicando o enigma de Molly? Sim, até certo ponto, mas sobretudo mostrando que a identidade de um ser humano não cabe em nenhum cliché dramático – chama-se a isso ser um grande narrador.

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