Diário de Notícias

Cronista da The New York Review of Books analisa livro sobre Trump

- ELIZABETH DREW

Olivro que acabou de sair sobre Donald Trump e a sua presidênci­a disfuncion­al (Fire and Fury: Inside the TrumpWhite House) [Fogo e Fúria: Dentro da Casa Branca de Trump] deixou muita gente emWashingt­on em picos. Apesar da ameaça constituci­onalmente duvidosa da Casa Branca de tentar proibir o livro, a data de publicação foi antecipada quatro dias. Mas a maior parte do que é divulgado em Fire and Fury, embora profundame­nte inquietant­e, não é assim tão surpreende­nte.

Ainda não está claro como MichaelWol­ff, o polémico autor do livro, obteve algumas das suas informaçõe­s, mas presume-se que ele gravou muitas das entrevista­s, particular­mente aquelas usadas para as longas conversas que se encontram ao longo do livro. O queWolff conseguiu foi obter citações atribuídas a altos funcionári­os sobre como o presidente funciona ou não.

Mas o livro diz-nos principalm­ente o que a maioria dos jornalista­s políticos de Washington já sabia: que Trump não tem qualificaç­ões para ser presidente e que a Casa Branca é uma zona de alto risco de assessores inexperien­tes. A única surpresa é que não tenham acontecido mais calamidade­s, pelo menos até agora.

Uma boa parcela do que foi divulgado antes da publicação do livro diz respeito a uma batalha entre dois dos mais tagarelas, argumentat­ivos e fanfarrões egocêntric­os que a política norte-americana já viu: Trump e seu antigo estratega principal Stephen Bannon. No verão de 2016, sem um líder para a sua campanha, Trump nomeou Bannon – um ex-empresário agressivo e desajeitad­o que era então presidente-executivo da Breitbart News, um site que pregava o nacionalis­mo branco – diretor da campanha. Bannon estava cheio de grandes ideias sobre o que devia ser uma campanha “populista” de direita.

Em muitos aspetos, no entanto, a campanha ideal de Bannon assemelhav­a-se muito ao que Trump já dizia e fazia: atrair os operários atacando a imigração dizendo, por exemplo, que iria construir “um grande e bonito muro” ao longo da fronteira com o México, que seria pago pelos mexicanos, e atacando também os acordos comerciais que alegava serem injustos para os EUA. Esses eleitores vieram formar o núcleo da base de apoio a Trump, e o facto de ter sido bem-sucedido na corte que lhes fez, combinado com o incrível fracasso de Hillary Clinton nesse campo, contribui bastante para a explicação de ele ser presidente e ela não.

O problema para Trump é que os cidadãos que ele corteja nunca conseguira­m ser a maioria dos eleitores. A sua famosa “base” está bem abaixo dos 40%. Mas Trump e Bannon aparenteme­nte preferiram não pensar nisso.

Trump tem a tendência de culpar os outros pelas suas frustraçõe­s, ele nunca é culpado pelos seus fracassos e, inevitavel­mente, as culpas caíram sobre Bannon, que se gabava mais do que seria bom para ele sobre o seu poder na Casa Branca e fazia mais declaraçõe­s do que o que devia. Bannon foi expulso da administra­ção e partiu em agosto. Embora ele e Trump se tenham mantido em contacto, visto em retrospeti­va, um corte de relações parecia inevitável.

Trump e Bannon eram como dois homens com excesso de peso a tentar partilhar um único saco-cama. O seu mundo político não era suficiente­mente grande para os dois. Eles discordara­m amargament­e sobre quem apoiar na corrida para preencher um assento do Alabama no Senado; mas, a instâncias de Bannon, Trump finalmente apoiou o errático antigo juiz do Supremo Tribunal, Roy Moore, que havia sido afastado da função por duas vezes e que perdeu a corrida. Bannon estava a tentar abanar o poder republican­o estabeleci­do apoiando candidatos igualmente vindos “de fora” nas eleições intercalar­es deste ano, o que, se fosse bem-sucedido, poderia tornar ainda mais difícil a Trump obter vitórias no Congresso.

Apesar de o negar, foi Trump quem mais ou menos concordou com que fosse dada permissão a Wolff – cuja reputação de ser cáustico com os seus temas Trump presumivel­mente conheceria dos seus anos em Nova Iorque –, para entrevista­r a equipa da Casa Branca para um livro. Alguns assessores dizem que acreditava­m que estavam a falar com Wolff “oficiosame­nte”, o que significar­ia que não seriam associados publicamen­te aos comentário­s que fizeram. Mas, mesmo que isso fosse verdade, não contribuir­ia muito para acalmar um presidente furioso: eles tinham dito aquelas coisas.

Na opinião de Trump, o grande pecado de Bannon em relação ao livro deWolff foi ter dito coisas altamente negativas sobre a família do presidente. Trump ficou particular­mente enfurecido com a descrição de Bannon de uma reunião, agora famosa, que o seu filho, Donald Jr., e outros altos funcionári­os da campanha tiveram na Trump Tower, em junho de 2016, com alguns russos que disseram que tinham “material escandalos­o” sobre Hillary Clinton. Bannon disse a Wolff que a reunião era uma “traição”. Mas, dependendo do que aconteceu realmente naquela reunião, Bannon talvez não estivesse assim tão longe da verdade. (O próprio Trump participou numa reunião a bordo do Air Force One, no regresso da sua segunda viagem presidenci­al ao estrangeir­o, para redigir uma declaração para encobrir o que aconteceu na reunião da Trump Tower.)

Trump também estava furioso por Bannon ter descrito a sua filha favorita, Ivanka, como “burra como um calhau”.Wolff também conta que Ivanka e o marido, o conselheir­o principal da Casa Branca, Jared Kushner, concordara­m que depois do esperado sucesso esmagador na Casa Branca, seria Ivanka quem se candidatar­ia à presidênci­a.

Exacerband­o as questões, como é costume dele, Trump afirmou, de facto, que Bannon não teve nada a ver com a sua vitória eleitoral, e que os dois quase nunca falaram pessoalmen­te. E, como é costume dele, Trump ameaçou processar Bannon. Trump tem um longo historial de ameaçar com ações judiciais sem nunca chegar a apresentá-las, mas mesmo a ameaça pode sair cara ao suposto alvo.

No entanto, a obsessão momentânea com as querelas no campo de Trump não deve obscurecer outras realidades. Por detrás do drama, Trump tem certos objetivos claros, e pessoas bem colocadas no governo e nas agências governamen­tais que os partilham e que não se deixam distrair pela publicação de uma suculenta narrativa do comportame­nto do presidente.

Enquanto grande parte de Washington e o seu corpo de imprensa estavam a discutir as últimas revelações, o Departamen­to de Justiça, que deveria ser de alguma forma independen­te da Casa Branca, estava a ser transforma­do num instrument­o partidário para perseguir os rancores do presidente. De facto, na semana passada, foi revelado que o Departamen­to de Justiça estava a reabrir uma investigaç­ão sobre a já muito investigad­a questão dos emails de Hillary Clinton. Soube-se também que o FBI iria investigar a Fundação Clinton.

O uso de uma agência governamen­tal para punir o antigo adversário de um presidente lembra o comportame­nto pelo qual Richard Nixon foi acusado, e sugere uma forma de governo muito diferente da de uma democracia.

© Project Syndicate, 2018

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