“ANGOLA PODERÁ SUSPENDER PRESENÇA NA CPLP”
MARTINS DA CRUZ EX-MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
Presidente João Lourenço deu conferência de imprensa de balanço de cem dias em Luanda e falou do processo judicial a Manuel Vicente, antigo vice-presidente
“Lamentavelmente, Portugal não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Portanto, nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos este tipo de tratamento”
JOÃO LOURENÇO
PRESIDENTE DE ANGOLA
As relações bilaterais de Portugal com Angola “estão neste momento congeladas” e Luanda pode mesmo suspender a presença na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), afirmou ontem o embaixador Martins da Cruz. O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, que falava ao DN na sequência das declarações de ontem do presidente João Lourenço, na conferência que assinalou os seus 100 dias de governação, sobre o processo judicial que envolve o ex-vice-presidente Manuel Vicente, diz que tais afirmações são “um dado novo em termos de política externa”.
“A partir de agora não há recuo possível” para Luanda, assinalou Martins da Cruz, pois deixaram de ser os ministros a comentar o envolvimento de ManuelVicente na Operação Fizz, onde é suspeito de ter corrompido o procurador Orlando Figueira quando este estava no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (ramo do Ministério Público que investiga a criminalidade mais grave, organizada e sofisticada como a económica).
Certo é que “nada garante que Angola não decida suspender a sua presença na CPLP. Não me surpreenderia”, sublinhou Martins da Cruz, adiantando que países lusófonos como Timor-Leste – donde fugiram recentemente dois portugueses acusados pela justiça – “estão a olhar atentamente e a analisar ao milímetro esta situação”. Daí o receio sobre as consequências da atuação do Ministério Público português nas relações bilaterais ou mesmo multilaterais, pois Portugal, sendo signatário da CPLP, recusou o pedido de auxílio judiciário feito no quadro daquela organização.
João Lourenço afirmou o seguinte: “Lamentavelmente [Portugal] não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento e por essa razão mantemos a nossa posição.” Sublinhando que “a intenção não é livrar o engenheiro Manuel Vicente da acusação”, o chefe do Estado angolano adiantou: “Nós não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro.” Agora, as relações bilaterais vão “depender muito” da resolução do caso, frisou.
Para o embaixador Seixas da Costa, estas afirmações representam “um significativo passo em frente” de Luanda no caso porque “nunca Angola admitiu a possibilidade teórica da culpabilidade”. Isso “altera, muito substancialmente, aquilo que, durante muito tempo, parecia ser a perspetiva de Angola [de] rejeitar objetivamente qualquer culpabilidade” de Manuel Vicente.
Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos, disse que João Lourenço “foi enfático a dizer que não está em causa o facto de [Manuel Vicente] ter cometido ou não crimes, que isso é uma coisa que a justiça provará ou não”. Por isso, o chefe do Estado angolano coloca o caso “onde ele deve ser colocado, em questões de justiça”.
“O que Angola faz questão é que, se [Vicente] for constituído arguido e julgado, parte do julgamento seja em Angola. E isso vai seguir os trâmites normais e deve ser algo a que se deve chegar a acordo, porque é uma coisa normal entre países que têm acordos de justiça”, realçou.
Note-se que a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os países da CPLP “compreende a comunicação de informações, de atos processuais e de outros atos públicos, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo [...]. Acresce, porém, que o Estado requerido pode recusar o pedido se considerar, entre outros pontos, “que a prestação do auxílio solicitado prejudica um procedimento penal pendente no [seu] território [...]”.
Paulo Gorjão, do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS), qualificou de “profundamente preocupante” a forma como Angola “tem vindo a abordar este dossiê com Portugal”, dado que o “torna refém o relacionamento bilateral de uma questão judicial”. “Estamos perante uma linha de continuidade, mais uma, entre o anterior regime e o atual. Não se percebe, à luz da proclamada luta contra a corrupção, que João Lourenço crie obstáculos ao processo a decorrer em Portugal”, acrescentou.
Governo, PS, PCP e CDS escusaram-se a comentar. O deputado José Cesário (PSD) disse ser necessário “muito diálogo e diplomacia”. “Compreendo a posição” de João Lourenço “como espero que ele compreenda a posição de Portugal enquanto Estado de direito”. Para Maria Manuel Rolo (BE), “não há interesse económico algum que possa [...] interferir com a independência do poder judicial face ao poder político”. Com Susana Salvador e Lusa