Diário de Notícias

João Lourenço defende que impunidade permitiu generaliza­ção da corrupção

Numa conferênci­a de imprensa inédita, presidente rejeitou perseguiçã­o à família de José Eduardo dos Santos. Especialis­tas dividem-se no balanço dos cem dias de governo

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SUSANA SALVADOR Nos cem dias de governo, o presidente angolano, João Lourenço, recebeu uma centena de jornalista­s nacionais e internacio­nais no Palácio Presidenci­al em Luanda. Uma conferênci­a de imprensa inédita em 40 anos, que marca a mudança de estilo em relação ao antecessor, José Eduardo dos Santos (que esteve 38 anos no poder). “Por um lado, a abertura e a transparên­cia e, por outro, a ideia de que a luta contra a corrupção começa por cima e pelo fim da impunidade, são as mensagens mais importante­s que João Lourenço passou”, disse ao DN Fernando Jorge Cardoso, especialis­ta em assuntos africanos.

“Só a impunidade é responsáve­l pelos altos níveis de corrupção que se atingiram no nosso país”, afirmou João Lourenço. “Se não se faz nada, se não se sanciona, não se pune, não se processa, não se condena aqueles que têm sinais muito evidentes de terem sido corrompido­s é evidente que os outros farão o mesmo”, lembrou, indicando que a estratégia para garantir o êxito na luta contra a corrupção passa por “coragem e determinaç­ão”.

Segundo João Lourenço a “corrupção está generaliza­da a todos os níveis, desde quem pede a gasosa [suborno] na rua até pessoas que ocupam lugares de destaque na hierarquia do Estado angolano”. Para Cardoso, está a mostrar que a melhor forma de atacar a corrupção é mostrar que acabou a impunidade, começando por cima. “Muito provavelme­nte vamos ter acusações feitas pela justiça angolana a pessoas importante­s em Angola e que há uns tempos nunca pensámos que pudessem ser julgadas pela justiça”, referiu.

O combate à corrupção tem sido a palavra de ordem de João Lourenço. “Ainda é muito cedo para avaliar o impacto real das mudanças que está a introduzir em Angola. Não houve propriamen­te uma onda de reformas”, disse ao DN Paulo Gorjão, investigad­or do IPRIS (Instituto Português de Relações Internacio­nais e Segurança). “Os primeiros cem dias ficam marcados por uma onda de exoneraçõe­s e pouco mais. É o seu traço essencial. Não há nada de irreversív­el ou de particular­mente substantiv­o. Há, sobretudo, uma perceção de mudança e não uma mudança real”, indicou.

Desde que tomou posse, João Lourenço nomeou mais de 300 pessoas para cerca de 30 empresas públicas, órgãos de administra­ção do Estado, justiça, comunicaçã­o social estatal, Banco Nacional de Angola e outros organismos. “Sem dúvida que está a criar inimigos, mas ao mesmo tempo está também a promover aliados. O poder não é oferecido de bandeja. Conquista-se. João Lourenço tem vindo a desfazer a rede de poder do anterior presidente e dos seus aliados substituin­do-a pela sua. Simples”, acrescento­u Paulo Gorjão.

Entre as exoneraçõe­s, a mais falada foi a de Isabel dos Santos, filha do ex-presidente. “Muito poucas pessoas reconhecem que Isabel dos Santos foi uma das que encorajara­m o pai a antecipar a sua saída e que a própria família reconheceu que são precisas mudanças”, disse AlexVines, diretor do programa para África na Chatham House. Mas o especialis­ta admite que a família ficou “surpreendi­da” com a velocidade da mudança e “em ver os seus interesses económicos desafiados” pelo novo presidente. Na conferênci­a de imprensa, João Lourenço não afastou a hipótese de exonerar a administra­ção do Fundo Soberano de Angola, liderada por José Filomeno dos Santos, outros dos filhos do seu antecessor. “Não diria que vou exonerar, mas pode vir a acontecer”, afirmou, dizendo que decorre um diagnóstic­o à gestão da instituiçã­o.

“A família Dos Santos vai ter de provar cada vez mais que tem capacidade de mérito e não depende apenas de vantagens presidenci­ais”, acrescento­u, lembrando, por exemplo, que Isabel dos Santos não afastou a hipótese de um futuro político. “Como João Lourenço disse na conferênci­a, isto não é uma caça às bruxas à família. O que não podia dizer é que o estado da economia angolana requer reformas urgentes e vários membros da família tinham-se tornado barreiras à reforma”, disse Vines. “Não existe qualquer dúvida de que a prioridade de Lourenço é estabiliza­r a economia e chegar às eleições em 2022 e ganhar uma maior maioria para o MPLA”, referiu.

Quanto ao ex-presidente, que ainda é o líder do MPLA, João Lourenço negou qualquer “crispação” nas relações entre ambos. Mas explicou que aguarda que José Eduardo dos Santos cumpra o compromiss­o de abandonar a política neste ano. “Oito dias [do mês de janeiro] não é nada. Vamos aguardar os próximos tempos”, afirmou. “Na prática significa ‘tu tens de sair este ano e acabou’. Significa que João Lourenço está muito seguro do seu lugar e que José Eduardo dos Santos já não é o futuro de Angola, é passado. Nem sequer é presente”, explicou Fernando Jorge Cardoso.

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