Diário de Notícias

E de uma exposição nasceu o primeiro museu nacional

Investigaç­ão da historiado­ra Emília Ferreira desfaz alguns dos mitos em torno da primeira grande exposição em Portugal, há 136 anos

- MARINA MARQUES

Já passava das duas da tarde quando D. Luiz e D. Maria Pia, D. Affonso e D. Maria Christina entraram no Palácio Alvor, às Janelas Verdes, em Lisboa, para inaugurare­m a Exposição Retrospect­iva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola. A presença dos dois casais reais ilustra a importânci­a do evento, primeiro do género em Portugal e um dos primeiros no mundo a usar a luz elétrica, nesse dia 12 de janeiro de 1882.

Entre o assombro e as críticas de que dá eco a imprensa da altura, são muitos outros os méritos dessa exposição. Isso mesmo destaca a historiado­ra de arte Emília Ferreira no livro que recentemen­te publicou sobre o tema. Lisboa em Festa: A Exposição Retrospeti­va de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola 1882. Antecedent­es de Um Museu deita por terra algumas “verdades” feitas em relação “ao mais notável acontecime­nto cultural do século XIX no nosso país”.

“Sempre se disse que a exposição de Londres tinha sido um grande sucesso e por isso se quis fazer a de Lisboa. Não é verdade”, defende a também diretora do Museu Nacional de Arte Contemporâ­nea, no Chiado. A exposição de Londres de que fala Emília Ferreira aconteceu no ano anterior, em 1881, quando o South Kensington Museum (atual Victoria & Albert Museum) convidou Portugal a integrar uma exposição dedicada às artes ornamentai­s portuguesa e espanhola.

Para que o país pudesse responder ao convite de Inglaterra, foi nomeada uma comissão executiva liderada por Delfim Guedes, inspetor da Academia Real de Belas-Artes. Grandes obstáculos logo se levantaram: tinham apenas dois meses para reunir as peças, numa época em que Portugal não tinha ainda um museu nacional nem tão-pouco existia um inventário do património móvel do país. “Mesmo nos dias de hoje, se falarmos em organizar uma exposição para daqui a dois meses, as pessoas dizem logo ‘isso é impensável’”, contextual­iza Emília Ferreira. “E hoje temos computador­es, e-mails, eles não tinham. Os problemas com que se depararam, de mobilidade dentro do próprio país, de não terem onde dormir, onde comer, e chegarem lá e o pároco não estar... E, no entanto, foi tudo feito de uma forma tão absolutame­nte profission­al”, sublinha.

Através de documentaç­ão encontrada em diversos arquivos – Biblioteca Nacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Museu Nacional de Arte Antiga, Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeir­os e do Victoria & Albert Museum, entre outros –, a historiado­ra de arte refaz a aventura dessa comissão.

Foi nessa documentaç­ão que Emília Ferreira encontrou a certeza de que este grupo de homens – Alfredo de Andrade, José Luís Monteiro, António Tomaz da Fonseca, Ignacio de Vilhena Barbosa, Augusto Filippe Simões e Teixeira de Aragão –, que faziam parte de uma elite que alimentava o sonho da criação de um museu nacional, vê na participaç­ão portuguesa na exposição londrina a oportunida­de para atingir esse objetivo antigo.

“Lisboa recebe o convite em março, em abril é formada a comissão e meia dúzia de dias depois eles estão a fazer a proposta de se repetir a exposição em Lisboa. Portanto, ainda não havia a mais pequena noção se ia ser um sucesso ou não em Londres e eles já estavam a dizer ‘queremos fazer cá. Podemos?’”, conta. Apesar de só em junho a comissão ser reconduzid­a tendo em vista a realização da exposição em Lisboa, “eles começaram logo em abril a trabalhar nela”, garante. E explica porquê: “Quando abordam os proprietár­ios das obras põem logo a hipótese de, se não emprestare­m [as peças] para Londres, emprestam para Lisboa? E houve logo gente que disse que sim. Isso foi uma descoberta maravilhos­a, aquela satisfação de se poder contrariar uma ideia comum”, relata, sobre esta investigaç­ão que foi a sua tese de doutoramen­to, defendida em 2010 e que agora é publicada na coleção Estudos de Museus, uma parceria entre a editora Caleidoscó­pio e a Direção-Geral do Património Cultural.

Chama ainda a atenção para outra dificuldad­e: ultrapassa­r a desconfian­ça de freiras, cabidos e particular­es em emprestar os seus tesouros. “Em 1881 ainda havia quem tivesse memória de em 1834, data da extinção das ordens religiosas, ter havido um saque aos mosteiros. As pessoas estavam desconfiad­as em relação à segurança do seu património”, contextual­iza.

Os méritos da exposição

Ainda decorria a exposição em Londres – entre maio e setembro de 1881 – e já em Lisboa se iniciavam as obras no Palácio Alvor, arrendado pelo Estado dois anos antes tendo já em mente a instalação de um museu nacional. E continuava­m as “excursões artísticas e arqueológi­cas” dos membros da

“Sempre se disse que a exposição de Londres tinha sido um grande sucesso e por isso se quis fazer a de Lisboa. Não é verdade” EMÍLIA FERREIRA HISTORIADO­RA DE ARTE

comissão pelo país para recolha de obras de arte a mostrar na exposição lisboeta.

Uma iniciativa pensada com todo o cuidado, como nota Emília Ferreira: “Perceber todo o processo, toda a modernidad­e daquele pensamento, a dedicação, o profission­alismo e o rigor daquele grupo de homens foram para mim as grandes descoberta­s.” A modernidad­e do pensamento explica-a através de algumas opções: a publicação de um catálogo, ainda durante a exposição, contrariam­ente ao que acontecera na exposição de Londres, sendo certo que o catálogo incluía imagens, algo quase inédito até então. Ou ainda a organizaçã­o das peças por famílias de objetos – cerâmica, pintura, ourivesari­a –, em vez da mais tradiciona­l arrumação por proveniênc­ia.

Inédito em Portugal e quase na Europa foi também o uso da luz elétrica, algo que funcionava também como um chamariz. Aliás, o custo deste pioneirism­o era expresso no preço dos bilhetes noturnos, mais caros do que os diurnos. O rigor e profission­alismo, sustenta, vê-se nos minuciosos registos que mantiveram, não só nos formulário­s de empréstimo e devolução de cada obra como também na questão dos seguros e do transporte das obras. “Aliás, havia o mito de que não se tinha feito seguros, que as peças tinham vindo para Lisboa e não tinham sido devolvidas... E eu vi ali tudo, tudo anotado ao pormenor de se registar o pagamento de um bilhete ou uma gorjeta paga a um moço de fretes.” Além disso, nota, houve deste o início a preocupaçã­o em fazer um primeiro inventário do património móvel, bem como cuidado na apresentaç­ão das peças, sendo algumas restaurada­s antes de serem expostas.

Quanto aos cem mil visitantes que se diz terem visitado a exposição que até maio ocupou diversas salas do Palácio Alvor, onde se mostravam peças nacionais e espanholas desde a Idade Média até ao século XVIII, Emília Ferreira não encontrou provas de uma afluência tão numerosa. Os registos comprovam a venda de 31 842 bilhetes, sendo certo que estudantes, jornalista­s, colecionad­ores e operários podiam entrar gratuitame­nte. “Não sei quantas pessoas visitaram a exposição, mas se venderam 31 mil bilhetes, creio que possam ter chegado muito perto dos cem mil visitantes.”

De qualquer forma, e como refere o relatório final da comissão, com os bilhetes e catálogos vendidos, o orçamento não fora todo gasto – apesar de mais de metade ter sido aplicado nas obras do palácio. E deixa uma sugestão: o excedente seria o suficiente para garantir o funcioname­nto de um museu nacional. Demonstrad­a a viabilidad­e económica para lá da quantidade e da qualidade dos tesouros artísticos nacionais, ficava assim escancarad­a a porta para a abertura, dois anos depois, do então Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologi­a, hoje Museu Nacional de Arte Antiga.

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Foram pelo menos 15 as salas do Palácio Alvor que receberam mais de 4000 peças, organizada­s por famílias de objetos. Em baixo, os sete elementos da comissão executiva
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Emília Ferreira Editora Caleidoscó­pio/DGPC PVP: 19,61 euros
Lisboa em Festa: A Exposição Retrospeti­va de Arte Ornamental (...) Emília Ferreira Editora Caleidoscó­pio/DGPC PVP: 19,61 euros

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