A beleza da censura
Há dois anos, a Coreia da Norte ameaçou com violência quem se atrevesse a ir ao cinema ver A Entrevista, uma comédia em que James Franco e Seth Rogen matam Kim Jong-un. O resultado foi que o filme esgotou por todo o lado e no dia da estreia cantava-se o hino americano dentro das salas. O furor associado à reação incendiária da Coreia do Norte é que levou toda a gente a querer ver o filme – precisamente o oposto do que o “querido líder” desejava.
É essa a beleza da censura nas sociedades democráticas. Quando se vê a mão a resvalar para o lápis azul, quando se sente o mau cheiro da proibição, quando uma instituição poderosa tenta calar uma voz – os alarmes que temos dentro soam alto. De repente, tudo o que interessa é galgar essa barreira, afastar o punho, aceder à obra proibida.
Talvez Michael Wolff, o jornalista com tiques sensacionalistas que escreveu Fire and Fury (Fogo e Fúria), não mereça uma leitura apaixonada e devotada. O livro, que descreve a eleição de Donald Trump e os seus primeiros meses na Casa Branca, tem incongruências e factos duvidosos. Algumas pessoas citadas negaram ter dito isto ou aquilo, ter estado naquele jantar ou no outro. Outras tantas confirmaram que sim, corroborando as suas pequenas aparições no livro. Wolff escreve com tanta propriedade e diálogos tão detalhados que é impossível não franzir o sobrolho. Teria ele espiado estas pessoas? Ter-se-ia tornado invisível? Gravou-as em segredo? Um pouco de tudo, quem sabe. Ele é conhecido por “apimentar” as suas histórias, apesar de não chegar a reproduzir falsidades. O fascinante é que esta “cor” que ele pôs na sua descrição da administração Trump é, possivelmente, uma das únicas formas de abordar o que se está a passar na Casa Branca. Para uma era surreal de política reality show, um jornalista ao estilo Caesar Flickerman em Hunger Games. Para um presidente que cria um campo de distorção da realidade constante, um jornalista que usa todos os meios para ter acesso privilegiado.
A sociedade americana ainda não conseguiu ir buscar o queixo ao chão desde que os primeiros excertos do livro apareceram no The New York Times. As bombas do livro são tantas que não dá para escolher a melhor – desde a lividez da campanha de Trump quando perceberam que iam ganhar e que teriam de ir para a frente com isto até Steve Bannon, ex-estratega principal da Casa Branca, chamar Trump Junior de traidor. Ivanka Trump entreteve a ideia de ser a primeira mulher presidente, quando chegasse o momento certo, e a maioria das pessoas que trabalham na Casa Branca duvidam da sanidade mental de Trump, que repete as mesmas histórias no espaço de meia hora.
É difícil estabelecer quanta credibilidade devemos dar ao livro. Steve Bannon já veio justificar-se, fazer correções. No entanto, a reação destemperada de Trump e da administração fazem suspeitar de que há fogo de onde saiu esse fumo. Um rol de mentiras e ficção não mereceria mais que uma linha de comentário: é tudo falso, próxima pergunta. Mas não foi isso que Trump fez. Emitiu um comunicado longo, esventrando Steve Bannon e reduzindo-o a um “funcionário” (não, ele foi o diretor de campanha e o estratega principal). O presidente usou o Twitter para dizer que Michael Wolff teve “zero acesso” a ele e à Casa Branca, quando há inúmeras testemunhas que o viram entrar e sair da West Wing durante meses a fio com um passe All Access. A revolta foi visceral de mais. Todas as administrações veem publicar livros de que não gostam, mas nenhuma tenta, como esta fez, impedir a sua publicação. A missiva enviada pelos advogados do presidente à editora do livro, Henry Holt, resultou na sua publicação antecipada. E agora não tem mãos a medir com a procura, que entupiu a Amazon e as livrarias Barnes & Noble. É a beleza da censura: se o presidente tentou proibir este livro de ser publicado, então quero lê-lo. Vi algures uma frase engraçada que resume bem o que se vive por estes dias: inadvertidamente, Donald Trump criou um clube de leitura à escala nacional.
Não serve de nada ir para o Twitter garantir às pessoas que se é “um génio estável”. Nunca conheci ninguém brilhante que andasse a gritar aos outros que era brilhante. Na tentativa de contrariar a ideia de que é instável e infantil, o presidente dos Estados Unidos da América foi para o Twitter dizer que é “muito, muito esperto”. O que está a dar credibilidade à narrativa de Wolff – esta ideia de que Donald Trump não tem condições para desempenhar o cargo de presidente – é, precisamente, a sua forma de agir. Está à vista de todos. Os podres revelados em Fire and Fury apenas ordenam as peças do puzzle.
Inadvertidamente, Trump criou um clube de leitura à escala nacional: se o presidente tentou proibir este livro de ser publicado, então quero lê-lo