Diário de Notícias

COMO TERESA FERREIRA DEU COR AOS FILMES DOS MELHORES

A colorista recebe amanhã na Cinemateca Portuguesa o Prémio Bárbara Virgínia, que distingue figuras femininas no cinema. Uma vida cheia de histórias para contar

- MARIANA PEREIRA

Teresa Ferreira esperava João César Monteiro à porta dos estúdios da Tobis. Estava combinado irem para a sala de projeção assistir ao filme deste, Recordaçõe­s da Casa Amarela (1989), para ver o resultado do trabalho que ela, colorista, fizera. Quando chega – “com as mãos nos bolsos, olhava assim pelos óculos, tinha uns olhos azuis lindíssimo­s” –, pergunta: “Então, Teresa, como é que está o filme?” “E eu digo: ‘César, está lindíssimo!’ O que eu fui dizer... ‘Lindíssimo? Margarida [Gil, sua companheir­a], vamos embora, eu não quero um filme bonito. Não vou, não vou.’ E começa a correr.”

Como esta, Teresa tem um baú de histórias para contar. É colorista, ou “etalonador­a”, palavra que vem de étalonnage: o ajuste da cor na película. Tem 77 anos. Começou a trabalhar aos 18 anos e só parou em 2009. Amanhã às 21.30 vai receber o Prémio Bárbara Virgínia na Cinemateca, criado em 2015 pela Academia Portuguesa de Cinema para distinguir figuras femininas. Teresa Ferreira segue-se assim a Leonor Silveira e Laura Soveral.

Sentamo-nos no Vá-Vá, café na Avenida Estados Unidos da América, zona tão cara ao cinema novo português, em que ela tanto trabalhou. Falamos daqueles anos em que Teresa assinou filmes de Manoel de Oliveira, António Reis, Raoul Ruiz ou Wim Wenders. Trabalhou com muitos, mas não com todos. “Graças a Deus, também não agradava a todos. Detestava que me chamassem boa rapariga.” Agarra num pacote de açúcar e começa a explicar o seu trabalho: usando apenas três cores, o encarnado, o verde e o azul, “pintou” tudo o que vemos na tela de cinema. “Antes de começar um filme encontro-me com o realizador e o diretor de fotografia. Fazer a cor de um filme não é fazer bonito.” É, haveria de explicar à frente, dar-lhe as cores que na verdade já lhe pertencem, e que ela tem de lhe devolver.

Diz de si que é uma “sortuda”, que as coisas vieram sempre ter com ela. Foi estudar para a António Arroio porque, no ciclo preparatór­io, pediu autorizaçã­o ao diretor para levar para casa alguns trabalhos que fizera. O diretor era Calvet de Magalhães, que, quando viu os trabalhos, logo escreveu ao pai de Teresa e ao pintor Lino António, diretor da António Arroio, para que ela fosse para lá estudar. E foi por sugestão do pintor, que no fim da escola lhe perguntou se não queria um trabalho de verão antes de seguirem para Belas-Artes, que foi parar aos estúdios da Tobis. Quando lá chegou pela primeira vez, António Lopes Ribeiro filmava O Primo Basílio, e ela ficou “deslumbrad­a”.

Ainda não tinha 21 anos quando foi convidada pelo “engenheiro Gil” para trabalhar no laboratóri­o da Ulyssea Filmes, que abriria dali a três meses. Esses deveria passá-los na Bélgica a estagiar. “O que é que a Teresinha faz? Saí logo da Tobis.” A Ulyssea ficava na Rua Marquesa de Alorna, formando “um triângulo com a casa do Fernando Lopes e a do Paulo Rocha, que morava aqui em cima”.

Foi para o laboratóri­o que correu quando aconteceu o 25 de Abril. “Encontro o Manuel Guimarães, que morava ao pé de mim: ‘Teresinha, já posso fazer os meus filmes!’ Aparece-me um completame­nte de direita: ‘Teresinha, dá-me cá o filme, porque eu tenho de o ir entregar.’ Apanhei o conselho da revolução a ir lá revelar filme, com os militares de Abril.”

Mostra uma fotografia com Manoel de Oliveira, em grupo. Estavam a ver o Vale Abraão com uma gargalhada no rosto. Perdeu a conta ao número de filmes dele em que trabalhou. Tal como a António Reis, nunca deixou de o tratar por “senhor”. Apaixonou-se pelo Acto da Primavera (1962), segundo filme dele em que trabalhou. “Fui imensament­e gozada por gostar do Oliveira, era oliveirist­a.” Fala de António Macedo: “Fiz o cinema todo dele. Eu e ele chegámos a fazer coisas inacreditá­veis. Fizemos coisas como no 2001 Odisseia no Espaço. Não era com as máquinas certas.”

Quando falamos da questão do digital, perguntamo­s-lhe se conhece Andreia Bertini, jovem colorista, e ela, acérrima defensora do analógico, da película, responde: “É muito talentosa. Já lhe disse: tu és a minha substituta.”

Ficou 18 anos na Ulyssea, até regressar à Tobis, de onde só saiu em 2009. “Saía da Tobis numa sexta-feira. Segunda-feira ao fim do dia vem um diretor dizer-me:‘Há aqui um filme que tem de fazer.’” Teresa disse que o daria a outra pessoa. Insistiu: tinha de ser ela. O filme era Arena, de João Salaviza. “É tão bonito. Eu disse-lhe: João, gosto tanto do seu filme, acho que vai ganhar um prémio.” Tinha razão. Arena haveria de ganhar a Palma de Ouro de melhor curta-metragem no Festival de Cannes.

Amanhã será ainda exibido o pequeno filme Paixão pela Cor, de Tony Costa, sobre a colorista, e Quem É Bárbara Virgínia, de Luísa Sequeira.

Teresa Ferreira trabalhou com Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Raoul Ruiz, Miguel Gomes ou João Salaviza

 ??  ??
 ??  ?? Teresa Ferreira tem 77 anos. Amanhã às 21.30 recebe o Prémio Bárbara Virgínia na Cinemateca
Teresa Ferreira tem 77 anos. Amanhã às 21.30 recebe o Prémio Bárbara Virgínia na Cinemateca

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal