Diário de Notícias

Bonecos de Estremoz esgotam após distinção da UNESCO

Em menos de um mês, a elevada procura deixou as prateleira­s das lojas vazias. Agora há que atrair mais ceramistas para conseguir ter bonecos, e os mais novos são essenciais

- ROBERTO DORES

A classifica­ção de Património Cultural Imaterial da Humanidade atribuída pela UNESCO à barrística de Estremoz fez disparar a procura dos bonecos deixando vazias as prateleira­s da célebre loja das Irmãs Flores. O stock esgotou em menos de um mês (o reconhecim­ento da UNESCO teve lugar a 7 de dezembro de 2017), tendo sido vendidas mais de mil peças. Mas houve procura para três mil, segundo as gerentes do estabeleci­mento. O problema é que o interesse da clientela contrasta com a falta de entusiasmo dos jovens da terra em dar continuida­de à arte. São poucas as pessoas que ainda se dedicam a fazer bonecos de barro e o artesão mais novo tem 31 anos.

Carla Sanches viajou de Lisboa, “de propósito”, confessa, até Estremoz julgando que iria comprar uma Primavera, uma Rainha Santa Isabel, um Fidalgo ou um Amor Cego – quatro dos principais membros do figurado em barro – para oferecer a uma prima. Enganou-se. Na loja onde pensava que iria encontrar todo o tipo de bonecos não havia nem um exemplar para venda. “Se calhar deveria ter telefonado antes, mas nunca me passou pela cabeça que não ia encontrar bonecos de Estremoz em Estremoz”, comentava desiludida, deixando quase sem palavras Maria Inácia e Perpétua, as duas irmãs que gerem a loja.

“É tão triste ouvir isto sem podermos compensar as pessoas que têm feito centenas de quilómetro­s para nos visitar”, lamentava Maria Inácia, revelando que Carla Sanches foi apenas uma das centenas de pessoas que visitaram a loja, nos últimos 15 dias, a quem teve de dizer que nada tinha para vender. “Talvez para a semana”, admitia, enquanto mais um casal entrava no estabeleci­mento para ouvir a mesma resposta, assumindo Perpétua que a estrutura da loja onde se trabalha ao vivo “não estava preparada para isto. Sabíamos que a classifica­ção de património iria aumentar o interesse sobre os nossos bonecos, mas isto foi muito para lá do que alguma vez esperávamo­s”, reconhece.

Aliás, a corrida ao figurado em barro de Estremoz começou logo no dia em que a UNESCO o reconheceu como Património Cultural Imaterial, levando a que Perpétua nem tivesse tempo de descansar quando regressou da Coreia do Sul onde tinha assistido, na ilha Jeju, à reunião que garantiu o selo de bonecos do mundo à olaria estremocen­se.

“Cheguei exausta depois de tantas horas de viagem, mas as encomendas e as pessoas que entravam na loja eram tantas, que foi chegar e começar a trabalhar”, revela. Conta a irmã Maria Inácia que num dos dias terão entrado na loja mais de mil pessoas. “Até tivemos fila à porta, porque não cabia mais gente. Quem é que podia imaginar isto?”, questiona a artesã, sem tirar as mãos do barro, porque não há tempo a perder entre os quatro ceramistas que estão sentados à mesa. “Precisávam­os de ser, pelo menos, oito pessoas a trabalhar a esta velocidade, para conseguirm­os criar um stock de 40 a 50 peças nos próximos dias. Mas quem é que quer aprender a mexer nisto?”, questiona Maria Inácia, depois de o último aprendiz ter começado a fazer bonecos já vai para 20 anos.

É Ricardo Fonseca, tem hoje 31 anos, e continua a ser o herdeiro solitário do legado, garantindo que não vai haver mais jovens a trabalhar nos bonecos nos próximos tempos. Justifica que são precisos vários anos para que alguém consiga apurar a arte, até conseguir fazer bonecos que possam chegar ao mercado. “Mas os jovens continuam sem aparecer”, lamenta Ricardo, que começou a construir peças, juntamente com dois primos, logo aos 13 anos para ocupar os tempos livres nas férias da escola. Uns anos depois já via algumas das peças serem vendidas em feiras de artesanato, chegando a juntar 150 euros para comprar o primeiro telemóvel. Os dois primos seguiram outras profissões.

Ricardo apurou a arte e aplicou-lhe criativida­de, ajudando a criar a “moda” dos presépios de barro que contribuír­am para projetar a olaria entre colecionad­ores. Perdeu a conta aos presépios vendidos, com valores entre 150 e 300 euros, mas neste Natal não chegaram para as encomendas.

“Isto vai muito do jeito de cada um, mas se as escolas não se meterem a sério na conservaçã­o desta tradição vai ser difícil garantir futuro”, alerta, revelando que nas últimas semanas o trabalho tem sido tanto na loja que não haveria tempo para ensinar a quem quisesse aprender as primeiras moldagens. “A escola secundária de Estremoz é que deveria apostar na promoção da nossa barrística nas turmas de artes para criar o bichinho nos miúdos”, diz, admitindo que os professore­s desconhece­m a arte, enquanto acelera para a conclusão de mais um cavalo, onde já tomam forma as pernas do respetivo cavaleiro.

Depois vai ao forno para cozer e a seguir é pintado. “Dentro de dias já teremos algumas coisas nas prateleira­s, mas por agora as pessoas terão de ter paciência”, diz resignado, à semelhança do que acontece com o colega Afonso Ginja, também com ateliê em Estremoz. Está pouco melhor. “Ainda tenho algumas peças que fiz ao longo do ano, mas as principais saíram todas”, conta ao DN, não arriscando um prazo para ter mais bonecos em exposição. “Sou apenas eu a fazer e a minha mulher a pintar. É impossível andar mais depressa”, justifica. Resta ter alguma sorte e conhecer na cidade algum artesão que trabalhe em casa e possa satisfazer uma encomenda.

Maria Inácia vendeu mais de mil peças mas a procura foi superior a três mil. Lisboetas deslocam-se a Estremoz para comprar bonecos

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Já não são muitas as pessoas que se dedicam a fazer os bonecos de barro, a mais jovem tem 31 anos

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