Diário de Notícias

Ninguém pode ser identifica­do só por estar em zona de risco

Reagindo a queixas de cidadãos e informaçõe­s das forças de segurança, a Inspeção-Geral da Administra­ção Interna enviou recomendaç­ão às polícias. Só devem identifica­r pessoas, sobretudo menores, se houver “fundadas suspeitas de prática de crimes”.

- DAVID MANDIM

A inspetora-geral da Administra­ção Interna enviou uma recomendaç­ão à PSP, à GNR e ao Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras (SEF) a lembrar que as forças policiais não podem identifica­r pessoas, e sobretudo menores, só por estarem em local considerad­o sensível se não houver suspeitas fundadas de crime. Mais: só devem conduzir um cidadão a um posto policial para identifica­ção em último recurso. Nesta recomendaç­ão, emitida após receber denúncias de situações em que os direitos de cidadãos foram postos em causa, Margarida Blasco, a juíza desembarga­dora que dirige a Inspeção-Geral da Administra­ção do Território (IGAI), aponta que, segundo a lei, ninguém deve ser detido para identifica­ção e que se for necessária a ida à esquadra tal deve ocorrer no mais curto espaço de tempo – a lei prevê seis horas no máximo, e no caso dos menores o limite é de três horas.

Questionad­a pelo DN sobre a razão para esta recomendaç­ão, a IGAI respondeu, por escrito, que “foi motivada pela relevância dos direitos referidos e pela necessidad­e que se sentiu de uniformiza­r práticas, motivação formada na sequência de informaçõe­s várias oriundas quer das forças quer de particular­es”.

A recomendaç­ão, que tem como assunto “identifica­ção e detenção de menores segundo a Lei Tutelar Educativa”, é de 27 dezembro de 2017 e refere que “as forças policiais podem proceder à identifica­ção de pessoas encontrada­s em local público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, desde que sobre essa pessoa recaiam fundadas suspeitas de práticas de crimes.

A IGAI, recorrendo ao artigo 250.º do Código do Processo Penal, realça que “as fundadas suspeitas terão assim de incidir em razões conhecidas ou de facto observadas pelo agente e não apenas estribadas no local onde o identifica­do se encontra, ainda que esse local seja identifica­do como um local sensível”.

Há o direito de resistênci­a à polícia Após este primeiro passo, “para uma pessoa ser conduzida a um posto policial para identifica­ção, têm de estar reunidas uma série de condições”, isto é, só deve acontecer “se não for possível identifica­r a pessoa através de Bilhete de Identidade, Cartão de Cidadão ou passaporte”, e no caso de não nacionais, da autorizaçã­o de residência.

Por lei, se o identifica­do não tiver nenhum documento, a identifica­ção poderá ser efetuada mediante comunicaçã­o com alguém que possa apresentar qualquer um dos documentos, ou mesmo pela deslocação com a polícia ao local onde tiver o documento. “O não cumpriment­o dos requisitos legais para a realização da identifica­ção, quer no local onde o mesmo se encontra quer com a sua condução ao posto policial, poderá permitir ao identifica­ndo o exercício do direito legítimo de resistênci­a”, adverte a IGAI. Nos casos em que a pessoa tem mesmo de ser conduzida a instalaçõe­s policias, a IGAI lembra que “em caso algum a permanênci­a no posto policial” poderá ultrapassa­r as seis horas.

No caso da identifica­ção de menores, entre os 12 e os 16 anos, as normas e os requisitos aplicam-se da mesma forma, mas aqui de acordo com os elementos vertidos na Lei Tutelar Educativa. Assim, o tempo máximo de permanênci­a no posto policial é de três horas e os pais devem ser informados de imediato.

Para se concretiza­r uma detenção, em termos de lei, o menor tem de ser suspeito de um crime contra as pessoas punível com uma pena igual ou superior a três anos. No caso de outros crimes, a pena tem de ser igual ou superior a cinco anos. A exceção a estes casos só pode ser ditada pelo Ministério Público, com a anuência de um juiz.

Caso na Amadora como exemplo Nesta recomendaç­ão, quando aborda o direito de resistênci­a a ordem policial, Margarida Blasco exemplific­a com um acórdão da Relação de Lisboa, de abril de 2017. A história remonta a julho de 2015, meses depois de outra situação, bem mais grave, que ocorreu na esquadra de Alfragide em que a detenção de cidadãos originou um inquérito-crime a 18 agentes da PSP por factos ocorridos no interior da instalação policial.

No caso deste acórdão referido, trata-se de um homem que caminhava na zona do bairro 6 de Maio, na Amadora, e foi detido por dois agentes da PSP por não ter consigo um documento de identifica­ção. Como estava perto de casa, ainda pediu para telefonar à mulher. A discussão com os polícias acabou mal, com o cidadão a ser algemado e conduzido à esquadra, tendo reagido à detenção. Foi acusado pelo Ministério Público (MP) de um crime de resistênci­a e coação e dois de injúrias. Requereu a instrução e a juíza decidiu não pronunciá-lo. Mas em simultâneo decidiu o arquivamen­to da sua queixa contra os agentes por um crime de ofensa à integridad­e física qualificad­a e de abuso de poder.

O MP recorreu, mas viu os desembarga­dores Antero Luís e João Abrunhosa criticarem a atuação policial e manterem a decisão inicial. Diz o acórdão que a lei “não permite a identifica­ção de qualquer pessoa encontrada em lugar público, conotado com o tráfico de estupefaci­entes, sem que sobre ela

recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes”. Os juízes frisam que “para se proceder à identifica­ção de uma pessoa não basta que o local público em que a mesma se encontra seja, um ‘local sensível’. Este conceito não foi assumido pelo legislador, já que o mesmo se basta com o local ser público, exigindo, contudo, que existam fundadas suspeitas sobre essa pessoa da prática de crimes”.

E concluem que a reação mais violenta do identifica­ndo é legítima neste contexto. “A detenção de uma pessoa para identifica­ção fora do contexto do artigo 250.º do Código de Processo Penal confere à mesma o direito de resistênci­a, consagrado no artigo 21.º da Constituiç­ão da República Portuguesa.”

Os insultos e a violência com que o homem terá reagido são tidos pelos juízes como decorrente­s da situação inicial em que não haviam um crime evidente. “No caso dos autos inexistia a fundada suspeita, logo a impossibil­idade de identifica­ção”, apontam os desembarga­dores, para concluírem que “inexistind­o este pressupost­o legal todos os acontecime­ntos posteriore­s devem ser lidos à luz do direito de resistênci­a, incluindo as expressões proferidas pelo arguido”.

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Polícias têm um limite de seis horas para levar cidadãos em geral para a esquadra e os identifica­r; no caso dos menores é de três horas

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